Folha de S. Paulo


México

Passaram 15 dias na Cidade do México, contam, enquanto encho de uísque um copo com gelo na cozinha da casa da nossa amiga que hoje faz 40 anos. Foram a museus, vernissages, cinemas, livrarias –e a um concerto de música clássica. Mas de todo o relato que me fazem –as comidas, as bebidas, os casais gays se beijando e abraçando e vivendo num clima de grande liberdade– o que mais me impressiona (o certo seria dizer "o que mais me comove", mas ninguém vai a festas pra se comover, só se for louco, solteiro ou pai da noiva) é essa fala do Ivan:

– Muitas vezes, de tarde, sob um sol forte, já bastante cansados, caminhando pelas ruas do centro no meio daquela confusão sonora e visual, a gente passava na frente de um bar e lá de dentro vinha alguma canção de mariachi ou coisa parecida, não manjo do assunto, de todo modo uma música vibrante, calorosa, labiríntica, uma música absurdamente brega, mas mesmo assim, ou por isso mesmo, uma música de cortar o coração de qualquer um. E eu não conseguia esquecer essa música ouvida na rua por acaso. Um trecho da melodia ou da letra ficava comigo o dia inteiro e me acompanhava a todos os lugares e até a manhã seguinte. Eu não tinha nenhum interesse por música popular mexicana, nenhum preconceito, mas nenhum interesse, e no entanto essa música inesperada e gratuita, absorvida aos pedaços, talvez tenha sido a minha lembrança inesquecível do México.

Guazelli
Ilustração da coluna de Fabrício Corsaletti Ilustração: Guazelli

Depois discutimos Nelson Rodrigues, chegam mais convidados, a sala enche, a festa acontece, vou pegar um chope e, no caminho, converso com outros amigos. Ou melhor, tento conversar, porque as ideias não vêm, só digo obviedades sobre política e literatura e de repente o papo descamba pra reuniões de condomínio.

(Não sei mais como me comportar em festas, se é que um dia soube. Fico encanado com as pessoas passando atrás de mim, não presto atenção nas pessoas paradas na minha frente etc. etc. Prefiro bar, mesa, cadeira, poucos amigos, cada um com a sua loucura, protegidos por uma barricada de garrafas.)

À uma da manhã saio sem me despedir, mando um WhatsApp pra aniversariante refazendo nosso pacto de ternura infinita e volto pra casa a pé, escolhendo as ruas mais silenciosas. E quando respiro fundo e me concentro, ou na fração de segundo em que desisto de me concentrar –como se a memória fosse minha –, ouço a música alegre, alegre e trágica, dos mariachis.


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