Folha de S. Paulo


Carnaval

Não lembro se fiz mais alguma coisa naquele Carnaval de 1996 além de ficar parado diante do palco do Nosso Clube, ardendo e babando de amor pela backing vocal da banda.

Era linda, mas acima de tudo diferente. Parecia estar e não estar ali, como uma trapezista que conseguisse rir de uma piada idiota, ouvida na noite anterior, enquanto viaja de ponta cabeça sobre o abismo.

Ilustração Guazzelli

Eu tinha perdido completamente a vontade de dançar e com sorte sair com alguma amiga da minha irmã, que ela teria me ajudado a convencer. Ficava parado no meio do salão ou num canto perto do banheiro, tomando uísque com guaraná —a boca seca de anfetamina que um amigo farmacêutico arrumava pra gente.

Eu tinha uma tia que só bebia durante o Carnaval e quando ficava bêbada só falava em castelhano. Não era espanhola nem nada, mas tinha essa mania. Meu tio, que era um tremendo cachaceiro, passava esses cinco dias do ano à base de Coca-Cola ou água, a fim de cuidar da esposa como um bom enfermeiro.

Na madrugada da terça-feira, vestida de chacrete, essa tia anunciou ao marido que precisava ir embora imediatamente —"estoy muy borracha, tesoro"—, e em seguida vomitou na frente de todo mundo, o que, diga-se em defesa de titia, era uma prática bastante comum na sacada onde os dois tomavam ar. Eu estava por perto e meu tio me pediu ajuda pra levá-la pra casa.

Na volta devo ter parado pra comer um lanche ou algo assim. Quando entrei no salão, o baile já tinha acabado. Senti uma tristeza absurda. Eu era louco por Carnaval e nunca tinha sentido aquilo antes. Ficava triste boa parte do ano, mas no Carnaval era insanamente feliz. Ainda não falava em espanhol, mas chegaria lá.

Os músicos recolhiam os instrumentos. Meus amigos, semimortos, estavam esparramados pelo chão. Sem pensar muito, fui até o palco, toquei no seu ombro, ela virou a cabeça e eu me apresentei. Seu nome era Carla e as maçãs do seu rosto estavam cheias de glitter. Perguntei se queria dar uma volta pela cidade. Ela disse que sim.

Saí do clube carregando duas caixas de som pesadas. Meus amigos só faltaram atirar pedras em mim, mas não dei importância. Eu já estava há milhares de quilômetros dali.

Na frente do hotel, ela disse "vou subir pra trocar de roupa e já volto". Sentei na calçada e olhei a praça vazia. O sol começava a aparecer atrás do consultório dos meus pais. Soprava uma brisa fria –que arrastava folhas e copos de plástico. No ano seguinte eu iria embora. Olhei pra tudo de dentro e de fora e tentei guardar aquela imagem comigo.

Ela apareceu de chinelo e camiseta e com uma lata de cerveja em cada mão. Encostou o braço no meu braço e a perna na minha perna e ficamos juntos até as nove da manhã. Não foi sob nenhum aspecto uma conversa entre desconhecidos. Me fez entender o que eu andava procurando. Jurei que nunca deixaria de procurar.


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