Folha de S. Paulo


(Des)entendimentos

(Continuação)

— Oi, boa noite. Eu gostaria de falar com o dono do restaurante, por favor.

— Quem fala?

— Prefiro não me identificar. Mas é importante. E do interesse dele.

— Alô?

— Olha, desculpa, eu não quero me identificar, mas aconteceu o seguinte: ontem à noite eu fui aí no seu restaurante, vi que tava sem a carteira e saí sem pagar.

— Como?

— Eu sou cliente de vocês. Adoro o restaurante. Mas ontem eu tava numa festa aí perto. Minha mulher foi embora antes de mim. Minha carteira tava na bolsa dela. Eu fiquei bêbado. Saí da festa não lembro como. Comi um combinado aí... Umas cervejas... Na hora de pagar que eu vi a merda. Eu tava bêbado demais pra tentar explicar pro senhor o que tinha acontecido. Fiquei apavorado e fui embora sem pagar. Tô morrendo de vergonha. Queria que o senhor me passasse o número da sua conta pra eu depositar o que devo. Foi um combina...

— Pode repetir história?

Ilustração Guazelli
#ARSAO1312 FABRICO CORSALETTI

Repeti.

— Nom precisa pagar. Dessa vez sushi de graça. Se veio aqui em restaurante bêbado, é porque gosta de restaurante. Se ligou pra contar, é porque boa pessoa.

— Acho que o senhor tá enganado...

— Nom, nom. Aqui como casa de cliente.

— Senhor, acredite, eu fiz todo um cálculo pra eu conseguir fugir sem o garçom me pegar. Não sou boa pessoa, não. Me passe os dados da sua conta, por favor.

— Nom tá entendendo? Hoje nom paga. Próxima vez que nom tem carteira fala comigo. Aí nom precisa correr, né?

— Acho que vou sair mais humilhado dessa conversa do que do seu restaurante.

— Como?

— O senhor é que é uma boa pessoa.

— Conversa ruim: boa pessoa, má pessoa... Má pessoa quem mata outra pessoa.

— Ah, meu Deus... Bom, obrigado. Obrigado mesmo! Juro que vou voltar aí em breve.

— Traz carteira, hihihi.

— Pode deixar.

— Cliente bem-vindo.

— Muito obrigado. Uma boa noite pro senhor! Bom trabalho.

— Arigatô!

*

PERIGO

Era a primeira vez do tio Abraão no Rio de Janeiro. No aeroporto de Santa Catarina, os parentes o alertaram:

— Os taxistas lá são folgados. Seja firme. Fale grosso. Mostre quem está no comando.

Tio Abraão era enorme, usava barba comprida, camisa aberta até o umbigo. Não acreditava que corresse perigo.

Por via das dúvidas, quando chegou a hora, abriu a porta do carro, sentou atrás do motorista, puxou a porta com força e ordenou:

— Toca pro Flamengo!

O motorista respondeu um "sim, senhor" que deixou tio Abraão satisfeito, mas também com remorso - talvez tivesse exagerado.

Só algumas quadras adiante percebeu que o motorista estava tremendo e, ao menos no painel, não havia taxímetro. O motorista agora estava quase chorando. Tio Abraão fez a pergunta absurda:

— Isso não é um táxi?

Ao que o outro respondeu:

— Isso não é um assalto?


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