Folha de S. Paulo


Amsterdã

Ilustração Guazelli

Chegamos às duas da tarde, de trem. Ela fica no hotel pra descansar um pouco. Estou ansioso pra ver os canais e vou dar uma volta. Fujo de uma avenida cheia de bicicletas quebrando numa viela lírica com bares —resisto—, caminho cinco quadras, atravesso uma ponte verde que dá de cara pra uma porta vermelha, tiro fotos, vejo canecas gigantes de cerveja à beira do canal, não tem lugar, ando mais, entro num coffee shop e pergunto como funciona. Não sei enrolar baseados; sempre fumei com amigos. Compro uma tora do tamanho de um charuto, trago, é forte, minhas pernas tremem, encosto na parede, trago de novo, saio pra rua. Sento num banco de frente pro canal e de repente: uma gaivota num rasante, o peito branco e as asas abertas em todo o esplendor do seu voo tridimensional. Há quanto tempo não olho uma gaivota? Há quanto tempo não vejo qualquer pássaro? Rio sozinho e, seguindo o som de um acordeom, subo por uma ponte de ferro. Fico indo e vindo de um parapeito pro outro até encontrar a melhor posição pra ver a cidade: os tijolos pretos, marrons, cinza e vermelho-café dos prédios magros de Amsterdã —barcos sob os pés— enquanto o sol começa a cair.

Tomo uma cerveja grande e sinto que o melhor já passou.

Volto pro hotel rezando pro meu inconsciente não transformar Amsterdã num labirinto.

*

À noite: longo passeio com ela entre as luzes amarelas do bairro Jordaan. De novo e sempre: os prédios austeros, ou discretos, ou simplesmente magros, como os senhores e as senhoras que não são senhores nem senhoras mas cabelos brancos intratáveis ao vento das bicicletas e peles queimadas pelo sol do mundo inteiro —os altruístas holandeses viajantes, servindo jantares pros refugiados.

*

Feito o check out, almoçamos num restaurante maomeno e numa disposição de espírito quase zero. Coisas de viagem.

Depois paramos pra um último café em frente ao bar indicado pelo garçom da noite anterior, que está fechado. Sentamos na calçada. Levanto pra ir ao banheiro, mas volto assim que abro a porta do salão.

— Você precisa ver isso aqui!

O bar mais lindo da Holanda (escondido atrás de uma fachada banal). Madeira preta descascada, quatro mesas coletivas, piano podre com livros, terra jogada no chão. Uma barwoman de dentes sujos e cabelo oxigenado que parece esconder na bota um punhal de 500 anos, e clientes saídos de uma tirinha do Crumb ou do Angeli: um velho descabelado com colete de fotógrafo lê jornal; outro, gordo e cabeludo, bebe chá e conversa com uma hippie de primeira geração, que mama uma sangria; um surdo (aparelhos auditivos) faz palavras cruzadas.

Hank Williams circulando no ar metafisicamente empoeirado. Luz do sol passando de leve pelas janelas delicadas. Garrafas de vinho cheias d'água com flores de verdade sobre as mesas.

Falamos muito e bebemos genebra. Pedimos cerveja e quase perdemos o trem. Na estação corremos e rimos, cheios de uma estranha fé no mundo e em nós. O nome é Monumentje. Um desses cantos da História —onde é possível se deixar viver.


Endereço da página: