Folha de S. Paulo


Fogos

Ilustração Guazzelli

Fogo
Sinto falta de viver mais perto do fogo. Gostaria de parar mais vezes diante de uma fogueira. Observar as chamas vermelhas, verdes e alaranjadas; ouvir a lenha estalar antes de se partir; aprender com as brasas a se deixar queimar por inteiro. Assim como respiramos o ar, bebemos a água e caminhamos rente aos jardins da cidade, seria bom passar um tempo ao redor do fogo diariamente. Talvez as ruas perdessem um pouco de sua graça. Por outro lado, eu pediria menos dos olhos da mulher que amo.

Carrancas (Pinacoteca)
As carrancas navegadas têm olhos ausentes, perdidos na viagem que fizeram e que não termina jamais. Pensam nela em tempo integral - barqueiro nenhum pode ser tão fiel. Quando deixaram o porto, na primeira travessia de Pirapora a Juazeiro, tinham olhos vazios. Pareciam não ver nada, presas de sua rigidez de estátua. Quem diria que as carrancas prestavam tanta atenção?

Musa
Paula P, a musa infinita, foi a loucura dos meus sete anos. Morava num casarão no topo da cidade e dava festas de gente grande, com caixas de som do tamanho de uma geladeira emolduradas por tubos de neon - nunca tínhamos visto nada igual. Usava botas brancas de couro, como as da Xuxa. Tinha olhos pequenos, meio fechados, e sobrancelhas grossas e castanhas. Era difícil saber pra onde ela estava olhando. Diziam que era má. Eu tinha medo dela. E queimava de um desejo que mais tarde me levou a encontrar mulheres bravas, fortes e boas de cama, que foram a glória da minha vida. Aos 20 anos encontrei Paula P no vão do prédio da faculdade de história da USP. Não consigo lembrar se conversamos ou se me escondi no banheiro. Acho que conversamos. Àquela altura ela era só uma mulher bonita e um pouco acima do peso, com um sorriso doce e quebrado de quem já sofreu bastante mas se recuperou. Não era mais a Paula P da minha infância, a musa terrível, de salto alto e microfone na mão, dublando à beira da piscina em que eu sonhava me afogar algum hit perverso da Madonna.

Utrillo (Masp)
O mundo só tinha acabado uma vez. Ninguém sabia que acabaria de novo. A luz brilhava no ar como um sino. Nos telhados cobertos de neve, o sol espalhava seu veludo. (Se houvesse alguma mulher nesse quadro, em primeiro lugar eu amaria seu cabelo.) A rua era das crianças que voltavam a pé da escola. Por trás das janelas verdes, os amantes tinham lábios vermelhos e corpos verdadeiramente nus. Em todas as mesas: o pão, o vinho e a toalha xadrez. Um refrão sussurrava —que era preciso viver.


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