Folha de S. Paulo


Pontes

Agora
Que tipo de escritor sou eu se tenho 36 anos e ainda não declarei meu amor pelas pontes? A ponte é a rua suspensa, a rua transfigurada. O homem procura a felicidade no tempo; a ponte é a felicidade do espaço. Uma vez pensei que a rua era prosa e a ponte, poesia; mas depois entendi que uma ponte é como um bom título de livro: "O Barão nas Árvores", "Os Detetives Selvagens", "Garagem Lírica", "A História dos Ossos", "As Flores do Mal". Indiferente ao submarino e tolerante com o avião, a ponte reina sobre o abismo de rios e depressões geográficas com seu esqueleto pleno, sua barriga de vento e sua alegria de viver. À noite, com suas luzes, atravessar uma ponte ao lado da pessoa certa pode ser fatal. Há muitas pontes no mundo —de aço, de pedra ou de madeira. Talvez mais pontes do que lugares aonde chegar.

Montevidéu
No táxi do aeroporto pro hotel eu não via a hora de caminhar mais uma vez pelas ramblas, comer molleja no Mercado do Porto e tomar vinho nos cafés de cem anos. Pelo jeito também estava a fim de exibir meu espanhol não de todo nojento pra minha namorada e pro casal de amigos com que viajamos: iam os três, mudos, no banco de trás do carro enquanto eu, na frente, falava sem parar com o motorista. Quando passamos por uma ponte, perguntei o seu nome (dela, ponte, não do motorista, Rodolfo). Mas o mal-humorado respondeu:

— Aqui não damos nome pra ponte, como vocês no Brasil. Ponte é ponte.

E fim de papo.

Moldava
Por sugestão de um amigo, dei uma googlada na ponte Carlos, em Praga. Tem uma curvatura perfeita e macia e pousa em cada margem de um jeito diferente. O piso é de paralelepípedo e exclusivo pra pedestres. Nos parapeitos há estátuas pretas —pretas de fuligem. Parece mais comprida que as pontes sobre o Sena e embaixo dela passa o rio Moldava. O rio Moldava. eu moldava, tu moldavas mas o rio não sossegava pois era feito de água e do molde transbordava

Equações
Uma ponte sobre um rio é um. Uma ponte sobre um rio poluído é preciso tomar providências. Uma ponte feia sobre um rio é dois e nunca será três. Uma ponte feia sobre um rio poluído é minha nossa senhora que civilização é essa.

Finalmente
Quando eu ficar velho, ou quando terminar de escrever meus livros, o que talvez dê na mesma —e eu espero que não, sem saber se o que desejo é viver os últimos anos livre de tudo, inclusive da escrita, ou se quero apagar com a caneta na mão, no meio de um poema—, só vou precisar de duas coisas: um bar e uma ponte. Uma ponte perto do bar. Que se veja da porta e da janela. De dia vermelha e à noite iluminada. Uma ponte que eu não consiga esquecer.


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