Folha de S. Paulo


Dieta

Por recomendação médica (não vou dizer o motivo; intimidade com o leitor tem limite), tive que me submeter a uma dieta rigorosa durante 50 dias. Nada de álcool (digamos que eu bebia bem), cafeína (um litro de café antes das três da tarde), gordura (viva o torresmo!), comidas ácidas (adeus, tomate) e doces (acho que posso viver sem quindim). Carboidrato apenas no almoço e em pequenas quantidades —meu macarrão com linguiça, eu juro que voltarei!

Foi osso. Mas foi bom. Me senti leve como há muito tempo não sentia. Não só fisicamente —emagreci sete quilos—, mas também espiritualmente. Eu ria à toa, e o riso vinha fácil. Os músculos da face estavam soltos, relaxados, o que me levou a pensar que em geral eles funcionam como um escudo pro meu rosto, como uma máscara balofa.

Trabalhei o dobro do que costumo trabalhar e sem grande esforço realizava as tarefas mais chatas: ir ao banco, ao pilates, a reuniões. Escrever também ficou moleza (trabalhar pra mim é dar aulas, revisar livros etc.; escrever é outra coisa): as palavras saíam como que dos meus dedos, e não da fornalha do diabo em que normalmente se transforma a minha cabeça quando o troço empaca. Eu pensava uma ideia e a escrevia; ou a escrevia antes de pensar e depois dizia comigo: é isso mesmo. Dias gloriosos. Ou melhor: manhãs. Porque eu acordava com o céu ainda escuro e fazia tudo isso até o meio-dia.

Ilustração Guazzelli

Mas então chegava a tarde e todo o equilíbrio ia pro brejo.

Sempre detestei a tarde. É um período melancólico. E a melancolia parece vir de fora pra dentro; somos invadidos por essa luz azeda, rançosa, gasta. O bom humor das pessoas está nas últimas. Surgem as tretas no trabalho; explodem as brigas; um motorista fecha um motoboy e grita pela janela, e no fundo adoraria reduzi-lo a uma pasta gelatinosa da cor do crepúsculo. Se a vida fosse uma sequência infinita de tardes, eu preferia não participar dessa peça.

Aí vem a noite e a coisa só piora. É um estupro mental. Você não teve a chance de se preparar com um negroni ou algumas latas, há estrelas demais e um barulho de grilos e sirenes —e de repente os amigos te chamam pra ir pra Mercearia, sua namorada anuncia que quer dançar feito louca, as revistas te esfregam na cara hambúrgueres de dois andares, coquetéis de seis cores, e a rua Augusta brilha lá embaixo como os olhos da Medusa.

Um banho! Você toma um banho. Janta, continua com fome e liga a tevê. Não é mais uma impressão, é verdade: agora você se identifica com Dexter, o serial killer que se sente —e isso é tudo o que ele sente— apartado do mundo dos homens por não ter sentimentos. O mundo dos homens. Das mulheres. Das crianças. Dos animais. Dos vegetais (com pouco sal). Dos minerais.

Sou uma pedra. Uma pedra sem graça diante de um quadrado luminoso trancada num quarto vazio. Sem esperanças de que essa eternidade acabe e eu possa —sem gelo!— voltar a viver.


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