Folha de S. Paulo


Encontros

Pedestre

Em Buenos Aires, as quatro esquinas de um cruzamento de duas ruas formam um octógono. Evidentemente são esquinas que não terminam num ângulo de noventa graus, mas sim num corte generoso da ponta do quadrado de cada quarteirão. Ouvi dizer que a ideia é madrilenha, e o objetivo é permitir que não haja encontros bruscos entre, por exemplo, um velho que vai a passos de tartaruga, de bengala e chapéu, pela calçada da Thames e um adolescente com fones no ouvido e meio alucinado que flana ligeiro pela Guatemala —a fim de que possam perceber o outro com alguma antecedência, evitando acidentes, chateações, assaltos. O fato é que essas ochavas, como são chamadas ("yo vivo en una ochava", me confessou certa vez uma argentina; tentei mudar pra casa dela na hora), criam um espaço circular e aconchegante, que lembra uma praça invisível, não realizada mas amplamente sugerida. Isso de cem em cem metros, sobre um terreno plano e com lajotas claras. Aos poucos essas zonas arejadas se incorporam à paisagem íntima do pedestre, e você se sente mais livre, mais inteligente, mais otimista em relação ao amor e à convivência pacífica entre os homens —sem imaginar que no fundo é uma vítima de uma grande sacada arquitetônica.

Ilustração Guazzelli

Churrasqueira

Um desejo que ainda não realizei: morar numa casa branca, simples, com duas janelas e uma porta entre elas (pintadas de azul-grécia) dando pro quintal —onde há um gramado, um pé de limão-taiti (em homenagem ao meu pai) e uma roseira. No interior de São Paulo, não muito longe da família. Paralela ao muro baixo, perpendicular à rua, que vejo através do portão, eu colocaria uma churrasqueira, dessas móveis, de tambor, que seria acesa duas vezes durante a semana, no fim do dia, e uma vez aos sábados, antes das dez da manhã. O cheiro da gordura queimando e a cerveja sagrada. As crianças do bairro e os adultos do mundo. Estrelas reencontradas e nuvens passando sem remorso. Meu pai! Minha mãe! O fantasma da minha avó num pano de prato que ela pintou. O sol se move e mudamos as cadeiras de lugar. Alguém se corta e eu penso: o sangue natural. Descalça, minha mulher caminha na grama. Seu pé em movimento equivale ao nicho de poesia francesa de uma biblioteca pública. Um amigo enrola um baseado. Boto mais carvão e começamos de novo. A lua, sadia como um dente, fica de longe pra não sofrer.

Casa

Lê poemas e é lida por eles. Os versos entram pelas pupilas e o sangue corre nas veias. A pele é quase dourada. As pernas parecem dois éclairs de caramelo. Sua cama é alta. O lençol, de linho. O quarto —onde ainda deixarei um par de chinelos e alguns rascunhos— tem paredes de pedra, com janelas vermelhas. No seu telhado moram os deuses inafetivos. Em volta é pasto. Pasto e porcos. Porcos e a estrada que vai dar na Bélgica.


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