Folha de S. Paulo


Personagens

Canção

Seu cabelo dói no ar como a lembrança do filho morto. Os ossos da mão são de marfim, mas nem por isso ela adora os elefantes. Quando fala, tem sempre uma árvore por perto. No seu olhar resta um pouco do silêncio de antes de eu nascer.

Figura

É louco pelo cardápio de almoço dos botecos, com seus pratos do dia fixos. Segunda, virado à paulista. Terça, dobradinha. Quarta, feijoada. Quinta, macarrão com frango. Sexta, peixe. Sábado, feijoada de novo. (No domingo sofre, trancado num quarto com as janelas fechadas.) Não que sobreviva à base dessa dieta. Em geral almoça em casa. Mas gosta de saber que ela existe. Que ao meio-dia de uma segunda-feira, por exemplo, há milhares de bistecas acompanhadas de arroz, couve, tutu, ovo e torresmo sendo devoradas pela cidade. Diz que dá uma sensação de ordem, de segurança, de continuidade. De que bem ou mal a coisa funciona. De que estamos juntos e no caminho certo.

Ilustração Guazzelli

Crença

Minha mãe acredita que pessoas que contam os podres de outras pessoas se tornam, no momento em que os contam, mais podres do que as pessoas que estão julgando.

— Algumas coisas são mais feias na boca de quem diz do que na vida de quem faz.

Ela não imagina o quanto devo a essa frase.

Baldinho

Não usava bolsa nem mochila, mas um balde de ferro, pequeno, desses de deixar sobre a mesa com gelo e cervejas. Levava-o pra toda parte. E dele tirava, quando necessário: carteira, óculos escuros, comprimidos pra dor de cabeça, livros, CDs, chaves, celular, cartões com dicas de restaurantes, maçã, baralho, moletom. Pelas costas, começaram a chamá-lo de Baldinho. Quando soube do apelido, numa sexta-feira, se sentiu esquisito e passou o fim de semana como que de luto. Na segunda-feira doou o balde pro porteiro do prédio onde vivia com a mãe e comprou numa loja do centro uma mochila preta, comum. Fez questão de rever os amigos e os colegas de trabalho. Queria marcar o fim de uma era de solidão e liberdade traduzidas em exotismo, e o início de uma vida sem confrontos com a moral e os costumes de seu tempo. Mas continuaram a chamá-lo de Baldinho.

Idea

Um poema de Idea Vilariño (1920-2009), poeta uruguaia, que tem tudo a ver com esses (e outros) tempos. O título é o primeiro verso, e a tradução é minha:

Como aceitar a falta
de seiva
de perfume
de água
de ar?
Como?


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