Folha de S. Paulo


Duzão (1979-2014)

1
Enquanto arma a tenda branca zero bala na calçada da sua casa, que finalmente fui conhecer, explica pra mim e pro meu pai que seu público-alvo são os estudantes da faculdade de Prudente. Depois monta uma mesa desdobrável de acampamento, também nova, debaixo da tenda. Meu pai senta; eu fico em pé. Diz que ainda não começou a trabalhar no campus, mas já assinou a papelada e na segunda que vem leva a tralha toda pra lá. Pergunto se conseguiu achar um nome —semanas antes ele tinha me consultado por WhatsApp sobre a maneira correta de usar o apóstrofo— e ele carrega no sotaque caipira pra contar que acabou chegando em Espetinho Du Bão. Acende o fogo e põe os espetos pra assar. Meu pai abre uma cerveja e depois outra. Vou marcando o que consumimos num caderno que ele deixa em cima do isopor. A cafta está ótima, o coração de frango também. Mas ele quer saber minha opinião sincera, porque dali a alguns dias não vão ser os amigos que vão julgar seu trabalho. Digo que está tudo uma delícia e lhe desejo boa sorte. E essa é a última vez que o encontro vivo sobre a Terra.

2
Na época da escola ele era muito gordo, mas tinha um sorriso lindo e fácil que quase freava o desejo de bullying dos magrelos. Ia mal em todas as matérias. Fora da sala de aula, porém, era o cérebro mais rápido do oeste paulista —amigo de meio mundo e vizinho do meu melhor amigo. Mas foi só depois dos vinte que a nossa amizade engrenou.

3
Antes de ir passar um tempo em Buenos Aires, fiquei três meses na casa dos meus pais esperando o casamento da minha irmã. De manhã escrevia e à tarde jogava sinuca no Bar do Serginho. À noite ia pra casa dele tomar tereré na varanda escura e fresca. Ele perguntava bastante sobre São Paulo, fazia planos de um dia me visitar e conhecer a rua Augusta e contava histórias surpreendentes, que me deixavam a estranha sensação de ser um forasteiro na cidade em que nasci. Era como se eu nunca tivesse morado lá.

Ilustração Guazzelli

4
Às vezes a gente saía de carro pra fumar maconha nas estradas de terra ao som de algum rock pré-histórico. Era bom olhar os pastos sob a lua e mijar a céu aberto.

5
Uma vez ouvi meu pai falando a seu respeito: "Gosto dele. É um cara gentil. E olha nos olhos da gente enquanto fala". Desde então procuro olhar nos olhos das pessoas quando falo (nem sempre consigo).

6
Pensar na churrasqueira quase sem uso que ele comprou pra finalmente ganhar a vida é de foder.

7
Ele morreu na Curva da Morte numa batida de moto à meia-noite na volta do trabalho. Eu estava num bar da Vila Madalena, às três da madrugada, tomando a saideira depois do lançamento do livro de um amigo, quando minha irmã ligou. No táxi, a voz do meu primo me transportou pra dentro daquela realidade e por instantes não fez nenhum sentido morar tão longe. Em casa, a torneira do banheiro estava pingando e não me deixava dormir.


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