Folha de S. Paulo


Lugares

Ilha
Certa vez, fazendo com amigos um passeio de barco pelo mar verde-esmeralda de Paraty, paramos numa ilha onde morava a ex-namorada de um deles. Era cientista e vivia rodeada por cachorros, macacos e tucanos. Acho que também criava uma cabra. Uma vez por semana ia até a cidade comprar mantimentos; o resto do tempo ficava em casa, sozinha. Fazia mais de dez anos que tinha decidido se afastar da sociedade. Não era rude; pelo contrário, era educada e doce —e não nos deixou ir embora sem provar a cachaça caseira que ela arranjava com um fabricante local. Ao seu lado, a gente logo percebia que o comércio entre os homens devia ser pra ela de uma violência insuportável e dava um certo alívio constatar que tinha conseguido fugir de tudo e de todos. Ou pelo menos de quase todos.

Ilustração Guazzelli

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Atenas
Quarto de pensão com janela sobre uma rua comercial. De onde sobem gritos de vendedores e latidos de cães. Levanto da cama na qual, tremendo de febre, me deitei há alguns dias; afasto a cortina e apoio as mãos no parapeito. A cal das paredes na luz crua. A pele brilhante dos braços das mulheres. As cores dos tecidos. Um copo de vidro e um balcão de metal. A carne do mundo é bela. Seu esqueleto também. Apalpo meu rosto e encontro minha caveira. Loucura ou liberdade —quem me trouxe até aqui?

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Parapeito
Você me deixa em casa depois de um fim de semana numa cidade do interior que nos surpreendeu positivamente. O lindo parque com seus fantasmas de 1924. O quarto de hotel com vista pra piscina e pra serra —árvores em flor ao longo das ruas. Abro a janela da sala e ligo a TV. A umidade do ar está em 13%. Como no deserto. Penso em San Pedro do Atacama, onde estive em 2002, e nos contos de Sam Shepard, que li no ano passado. Encosto no parapeito e respiro fundo. Minhas narinas ardem. Seu rosto surge entre os prédios —sem nenhum cinismo. Sua voz ao telefone. A nitidez da imaginação. Um jacaré sem água, sob o sol, passa diante de mim.

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Brasília
Visitamos o Palácio da Alvorada e o Eixo Monumental antes de irmos ao enterro. Era minha primeira vez em Brasília e quando olhei pro horizonte na direção da Esplanada prendi a respiração sem querer. Acho que gosto mais do céu do que do mar. O cemitério também era plano, e as sepulturas baixas, sem pompa, pareciam estar de acordo com aquela passagem de Tchékhov: "Tudo é belo neste mundo, tudo, com exceção do que nós mesmos pensamos e fazemos, quando nos esquecemos dos objetivos elevados da existência e de nossa própria dignidade humana". As orações do padre e a música entoada pelos ateus se perdiam no espaço, sob as nuvens. Árvores do cerrado, retorcidas, e mangueiras carregadas. Ipês-amarelos diziam AMARELO através das lágrimas.


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