Folha de S. Paulo


Relatos

CAMPEONATO

Um amigo jornalista me contou que todos os dias, às quatro da tarde, quando já trabalhou bastante mas ainda não o suficiente pra desligar o computador e cair fora, vai até o fumódromo do jornal e dá cabo de vários cigarros consecutivos pensando no campeonato.

O campeonato imaginário de futebol que ele inventou e no qual é, de longe, o melhor jogador. De olhos fechados e inalando fumaça, cria no telão delirante de sua cabeça jogadas arriscadas, dribles desconcertantes e gols geniais. A torcida grita. Ele comemora. Em cadeiras perto do gramado estão a família, os amigos e os colegas de trabalho gritando seu nome e levantando cartazes com frases incentivadoras ou simplesmente gratas: "VAI, MARCELÃO! CONTAMOS COM VOCÊ", "TE AMAMOS, GAROTO!", "REBENTA, CELÃO!". No terceiro cigarro ele repassa os lances decisivos sob ângulos diversos, ao mesmo tempo em que organiza a tabela e pensa no próximo adversário. Toda sexta-feira é dia de final - dia de erguer a taça e, claro, dar entrevistas na lateral do campo e em coletivas. Aproveita pra mandar um abraço pro sobrinho que vive em Campo Grande.

De volta à sua mesa, custa a se abater ante os problemas com que um repórter de política de um dos maiores jornais do Brasil fatalmente se depara durante um fechamento. Diz que o segredo é levar tudo na brincadeira. Ou seja, não esquecer que é um prodígio do futebol mundial. Que está ali na redação por esporte. Curioso por ver de perto a rotina de um homem comum.

ILUSTRAÇÃO GUAZZELI

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URUTAU

Um urutau tem frequentado o quintal dos meus pais, no interior de São Paulo. Toda noite eles ouvem seu canto triste e monótono - um longo U desconsolado. Pra descobrir que criatura era aquela, meu pai saiu pela cidade e arredores imitando seus gemidos. Até que uma velha sitiante os reconheceu. Desde então meu pai já virou a internet de cabeça pra baixo atrás de informações. Trata-se de um pássaro latino-americano, encontrado da Costa Rica à Bolívia, na Argentina, no Uruguai e no Brasil. Mede quase quarenta centímetros, tem boca grande e bico pequeno, penas mal-assentadas (despenteadas) e olhos enormes. Minha mãe o viu uma vez, pousado sobre um poste de luz, em silêncio (meu pai estava no bar). No dicionário aprendi que a origem do seu nome é tupi e significa mais ou menos "da família da coruja". Parece de fato uma coruja, mas uma coruja louca, rimbaudiana, expulsa do bando das corujas por imoralidades, uma coruja da pá virada que já teve seus dias de glória, mas que hoje não passa de um marginal inútil, sem amor. Da última vez que visitei minha família, minha sobrinha de sete anos parou ao lado da piscina onde eu boiava, virou o queixo pro alto (um outro nome do urutau é chora-lua) e começou a piar de um jeito angustiante. Me pediu que tentasse adivinhar a imitação. Eu fingi que pensava; depois disse que era uma girafa com soluço. Ela bufou e respondeu que não, era um urutau. E antes de pular na água: não acredito que você não conhece o urutau. Em que mundo você vive, hein?


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