Folha de S. Paulo


Minas

LADEIRA

Ladeira resplandecente de sol. Pracinha com jogadores de truco. Mulheres gordas a caminho do banco. Moleques pulando da ponte pro rio.
As árvores foram podadas. Não consigo imaginar como eram antes. Espero o dia de enxergar novamente o mundo. Por enquanto, apenas encaro a paisagem; assimilo formas que daqui a alguns anos possa talvez manipular. O céu acumulado de nuvens. Com uma risada no estômago. Guris molhados que gritam e saltam outra vez.

TORRE

Casa colonial perdida no meio do campo. Nenhum pomar em volta. Nenhum curral por perto. Nem sequer um cavalo pra comer o capim alto. Nobre e triste com sua torre branca, que já foi parte de uma igreja.

O dono, um fanfarrão solitário, nos levou até lá. E antes de fazer o som do sino se espalhar sobre a braquiária vermelha do crepúsculo abriu na parede falsa um armário secreto, de onde tirou uma garrafa e três copinhos, que encheu com a mais pura cachaça. Depois sugeriu como beber. De um gole só e com o rosto assassinado pelo sol.

MARIANA

Uma professora de Santa Bárbara do Oeste que já passou por Campinas, Santos e São Paulo, e agora vai trabalhar a pé. Um fotógrafo de dois metros de altura com bochecha e jeito de anjo. Um poeta soteropolitano que acabou de se aposentar. Um motorista que bebe cachaça aos golinhos mas cujo pai bebia numa golada só. Uma aluna que mancava e tinha um sorriso lindo e por quem quase senti vontade de me apaixonar. Uma aluna que parecia pensar coisas maravilhosas, mas que falava demais e nunca a frase certa. Um bar com varanda suspensa sobre a praça e sobre a noite onde comemos pastel de angu. Uma sacola com vidros de pimenta, água, bananas e meia garrafa de vinho. Uma mulher que dirige feito uma deusa. Morros cobertos por samambaias selvagens. Um andarilho. Placa alertando a presença de andarilhos. Um gavião pousado numa árvore solitária no meio do pasto que a estrada corta. Pão com linguiça. Pão com linguiça. Pão com linguiça.

ALEIJADINHO
Certos anjos do Aleijadinho lembram velhos banqueiros bêbados, libidinosos e bonachões, com suas bochechas e papadas absurdas. Neles porém não há cinismo. Pelo contrário, parecem aliviados por terem sido salvos de si mesmos pelo gênio generoso. São todos gratos a ele. E um pelo menos é muito feliz.

ALUCINAÇÃO
Casa colonial com jardim. A única da cidade. Ao lado da igreja e sob a lua. Lugarzinho maravilhoso. Onde imagino crianças que poderiam ser meus filhos. Elas brincam no sol. O cheiro de carne de panela se alastra pela rua e sobe até o céu. Do quarto em que escrevo posso vê-los lá embaixo. Abro a janela e jogo um toco de maçã na cabeça do mais velho. Ele fica louco com a brincadeira e quer vingança. Atira pedras pro alto gritando o nome de um vilão do momento. Erra todas. Menos uma, que chega fraca, sem perigo, à palma da minha mão. Eu a guardo no bolso. Não como amuleto, pois já não preciso deles, e sim como prova do quanto sou feliz.

Melhor cair fora de Minas antes que seja tarde demais.


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