Folha de S. Paulo


Marinhas

POMBAS

Da janela do quarto vi duas pombas escuras ciscando na areia da praia. De repente tive vontade de saber qual a sensação de ser uma ave daquelas, pequena e balofa, diante das águas cinza do inverno. Me concentrei e por muito pouco não consegui anular os quarenta ou cinquenta metros que nos separavam. Senti uma quase-vertigem, como se ganhasse um bico e começasse a rir. Depois caí outra vez no meu corpo pesado. Mais tarde, na volta das compras, larguei as sacolas na portaria do prédio e entrei no mar. As ondas gelaram minhas pernas e a maresia abriu meus pulmões. Era tudo real. Mas também era real o mar das pombas.

*

SURFISTAS

Depois de nadar, sentei na areia e fiquei observando os surfistas. O que é uma onda? Um produto do movimento do mar. O que é o mar? Uma criatura que aboliu a distância entre a forma e o desejo. O que faz quem pega uma onda? Entra na materialização do ritmo do mar. No verso do mar. Na frase musical do mar. Charlie Parker de olhos fechados num clube de jazz cheio de fumaça em Nova York à meia-noite agarrado ao sax e exigindo de seu cérebro a potência máxima. Esse garoto molhado de pulmões possantes que agora se despede do amigo e promete estar lá amanhã de novo às sete. Não estão buscando a mesma coisa? E não parecem muito próximos de encontrar?

*

TEMPO

Na sacada, ele olhou pro céu, menos nublado que no dia anterior, e gritou pra ela, que preparava o café: parece que hoje o tempo vai abrir. Por segundos ela esqueceu o sentido comum da frase e tentou imaginar o evento extraordinário de que estavam prestes a ser testemunhas. Quando o tempo se abrisse, ouviriam sons estranhos? Quando o tempo se abrisse, veriam cores novas? Quando o tempo se abrisse, continuariam juntos? Que cheiros sutis o vento espalharia pelas cidades libérrimas?

Depois ela se adaptou novamente ao que costumava chamar de realidade e às onze horas o sol apareceu. Foram à praia. Conversaram, nadaram, beberam caipirinhas. De volta ao apartamento, tiraram a areia do corpo com um banho frio e fizeram sexo. Às quatro almoçaram macarrão com vinho. Enquanto ele dormia, ela leu o primeiro capítulo de um romance policial. Mas até pouco antes de escurecer alguém dentro dela continuava inquieto, à espera das Grandes Inaugurações.

Ilustração Guazzelli

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