Folha de S. Paulo


Café Brasil

Deve ser influência da Copa. Assisti aos jogos da nossa seleção e fiquei com a palavra "Brasil" na cabeça. É uma palavra estranha, bonita. A primeira sílaba é estridente feito uma britadeira; a segunda é suave e começa com Z, o som hipnótico. A primeira te dá uma bordoada; a segunda diz: nem pense em fugir, agora é tarde, você já está louco por mim.

Mas eu não estou louco pelo Brasil. Nasci aqui, fui poucas vezes ao exterior; se dissesse que estou louco pelo Brasil soaria cabotino; seria como elogiar meus próprios ossos: que fibras colágenas! que sais de cálcio! que tutano! Nesse caso, acharia melhor subir logo o tom e dizer que estou louco pela vida. Eu gosto de viver. Mas a vida (ou o Brasil) é injusta e isso às vezes dá uma desanimada, e nunca sei se o desânimo é por causa do Brasil, da vida em geral ou de problemas pessoais, de traços de personalidade e trajetória.

Uma noite dessas, antes de dormir, eu me sentia assim, triste, mortificado. Pra me animar, pensei em todos os lugares-comuns possíveis: você ainda é jovem, tem amigos, namorada, dinheiro pra comer e ir ao cinema, pais saudáveis, sobrinha alegre e, ao contrário de algumas previsões mesquinhas, os últimos exames mostraram que seu fígado está ótimo e o espelho prova que você não ficou careca. Mas não adiantou. O mal-estar continuava. Por fim adormeci.

Ilustração Guazelli

De madrugada sonhei com o Café Brasil —um café roxo, espaçoso e lindo, do fim do século 19, cheio de madeira velha e metais sem brilho, localizado na região do Theatro Municipal, onde na realidade existe o vale do Anhangabaú e o viaduto do Chá, cujas almas (do vale e do viaduto) tinham se infiltrado nos bebedouros públicos, nas cadeiras de palha, nos jardins ensolarados e nos fósseis indígenas, milenares. Há uma varanda verde sob as árvores.

Pela janela de vidro azulado observo as pessoas comendo lá dentro. É um ambiente popular, familiar, talvez familiar demais; crianças passam por baixo das minhas pernas e gritam; é difícil caminhar sem tropeçar em alguma coisa. Me afasto do barulho e entro numa área indefinida, com grades e um grupo de teatro amador que brada o refrão "ruínas de Roma, ruínas de Roma", mas o que ouço é "castrem os sonegadores de impostos".

Surge a condessa russa. Vai ao banheiro lavar as mãos — água pura! nariz sagrado! — e na volta me encontra fumando atrás das cocheiras. Cavalos batem os cascos no chão de pedra. A angústia circula no alto e cai. O desejo circula entre nós e permanece. Conversamos de boca fechada, como conhecidos na fila de um restaurante. Mas essa não é uma conversa qualquer.

Na sequência seguinte estou sozinho, arrancando com uma espátula cega a cal das paredes de uma casa abandonada.

Mais tarde revejo a condessa, transformada em turista ou produtora de eventos, contemplando de um dos mirantes a paisagem a sua frente. Seu casaco é marrom-café e seu pescoço está em perfeita harmonia com a disposição topográfica do mundo. Coço meus olhos e meus dedos ficam brancos de sal. Serei algum viciado em ângulos agudos? Sinto sede e acordo molhado de suor.


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