Folha de S. Paulo


Três

CALÇADA

Uma garota de uns 16, 18 anos, branca, gorda, vestida com legging preta e camiseta roxa, varre a calçada de um bar da Vila Madalena às dez da manhã. Estou três casas abaixo dela, esperando abrir o espaço cultural onde tenho que deixar o material do curso —contos xerocados numa pasta— que darei ali na semana seguinte. Mas a porta está fechada e eu, com pressa.

Vou até a esquina e pergunto pra menina da vassoura se ela sabe que horas o espaço abre. Não sabe. Um cara sai de dentro do bar e me olha feio. Deve achar que estou de papo furado com sua empregada ou namorada, ou as duas coisas, ou nenhuma delas.

Volto pra frente do espaço cultural. Olho pela janela. Não tem ninguém lá dentro. Enfio a pasta por debaixo da porta e vou embora.

Passo pela menina. Ela pergunta: abriu? Digo que não. Ela olha pras minhas mãos vazias com olhar acusativo. Se não estou com a pasta, é porque abriu. Logo, estou mentindo e sou um canalha, que só a trata bem quando interessa. Penso em parar e explicar o que aconteceu. Mas depois vou me sentir um idiota por ter dado satisfações a uma estranha.

Opto por ficar culpado, fico, e caminho depressa em direção à esquina.

DOIS

Começo a frequentar um bar na Liberdade. Descubro que a dona é de Presidente Prudente, onde estudei na adolescência, e que Milton Ohata, um editor amigo meu, também é cliente do lugar. Mais tarde fico sabendo que existe um outro Milton Ohata nesse mundo e vive em Presidente Prudente.

Minha relação com o boteco se torna mais forte e ao mesmo tempo mais estranha, como se acreditasse estar lendo um conto de Hemingway e de repente me desse conta de que lia um romance de Cortázar. Como se essas coincidências, que afinal não significam quase nada, significassem muito.

Ao longo dos anos encontro Milton Ohata centenas de vezes, vale sempre a pena. Mas ele nunca mais deixa de ser o homem que tem um duplo a trinta quilômetros da casa dos meus pais, em Santo Anastácio. Um louco talvez perigoso. Que à noite cruza os pastos com uma foice de prata na mão.

SORTE

Namoramos há poucas semanas, ainda estamos nos conhecendo. Num jantar em casa de amigos, estão todos inspirados, alegres, engraçados. A cada dez minutos alguém tem um ataque de riso. As histórias são hilárias. Fazia tempo que algo assim não acontecia. É uma noite de sorte. Vamos aproveitar, eu me digo —e aproveito.

Na calçada, esperando o táxi, ela diz:

— Se você falar mais uma vez essa palavra —não tenho coragem de dizer qual era—, vou fazer xixi na calça.

Há uma criança em mim, com uma palavra mágica na ponta da língua, dando pulos de excitação. Um sádico em êxtase vindo do fundo das trevas pra triunfar.

Ela me olha, quer saber que tipo de homem eu sou. Se abrir a boca, perco seu respeito, perco a namorada —ou então a transformo numa prima. Respiro fundo. Não digo nada.

Passo dias me sentindo esquisito, melhor.

Ilustração Guazelli

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