Folha de S. Paulo


Carcaça de animal desconhecido

E o pior é que lembro quando um amigo ironizou:

— Quer dizer que você vai instalar um varal dentro do quarto?

O papo girava em torno de como chegar aos 35 sem uma barriga obscena porém sem deixar de tomar chope de três a quatro vezes por semana.

Ilustração Guazzelli

Confessei que tinha comprado uma esteira ergométrica. Todos riram, como se eu não tivesse nada a ver com exercícios físicos, como se tivesse estudado nesses colégios hippies (que inveja) onde meus amigos aprenderam a falar sobre os assuntos mais variados —de minimalismo húngaro a diretrizes de cidadania externa— e onde, me contam, o único esporte praticado era o pingue-pongue ornamental, isto é, um pingue-pongue lúdico em que não se marcavam os pontos a fim de não estimular a competitividade entre os alunos.

— Se liga, maluco! Fui campeão estadual de vôlei — esnobei.

Foi aí que um deles mencionou o lance do varal. Apostava que em três meses eu não usaria mais a esteira pra queimar calorias e sim pra pendurar toalhas molhadas, calças e camisetas sujas.

Passei os meses seguintes numa luta diária pra não desanimar. Toda tarde, depois do trabalho e antes do bar, eu sintonizava a TV num canal de notícias, montava na esteira e me sentia ótimo, conectado com o mundo, embora não fosse capaz de explicar que mundo era esse.

Em seis meses perdi cinco quilos; os amigos se espantaram; eu estava orgulhoso. Até que, do nada, a esteira não ligou mais.

Deus do Telemarketing, dai-me paciência e fazei com que o caminho da salvação seja certo, sem linhas tortas, orei enquanto ligava pra loja que me vendeu o produto.

Na loja disseram que eu tinha que procurar a assistência técnica e na assistência técnica me mandaram de volta pra loja, porque a garantia em casos de supercápsulas pré-maturadas com descabelamento à direita etc.

Liguei pro Antonio Prata, o rei da crônica e da corrida e, nas horas vagas, mecânico amador, que prometeu vir no sábado seguinte me ajudar. Mas no sábado ele teve um contratempo e esse contratempo recém completou dois anos.

De lá pra cá considerei me matricular na natação, no futebol, na ioga e no circo. Acabei optando pelo pilates e por caminhadas ao ar livre e poluído do bairro.

O fato é que até ontem à tarde eu tinha esquecido que tinha uma esteira dentro do quarto. Quando a vi, levei um susto: parecia a carcaça de um animal desconhecido; um cabideiro jurássico asfixiado sob tecidos pestilentos; um carro alegórico abandonado no fundo do barracão durante a ressaca do Carnaval que passou.

Gastei o resto do dia observando desconfiado cada objeto do apartamento. Como se procurasse um segredo. Não: como se tivesse criado coragem pra ouvir uma notícia fatal, que amargaria 2014 e talvez parte de 2015.

E então o telefone tocou.


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