Folha de S. Paulo


A puta

Após duas semanas rodando o interior de São Paulo numa viagem de trabalho, tudo o que eu precisava pra me sentir em casa era de uma tarde sozinho no Linda Frei Caneca, um botecão quase em frente ao shopping dessa rua em que abundam gays, comerciários, travestis, atores do Cemitério de Automóveis, prostitutas, coxinhas, gostosas, cachorros, vagabundos e seres humanos de modo geral.

Então peguei meu caderno de rascunhos e uma caneta, um romance de Roberto Bolaño sobre o mal absoluto, dinheiro pra algumas cervejas, uma porção de filé acebolado e cafés —e atravessei a rua Augusta de chinelo, sabendo que era ali, em nenhum outro lugar, que eu gostaria de estar naquele momento.

Às quatro da tarde, o Linda Frei Caneca (que nome ótimo; só não é melhor que o de outro boteco dessa rua, o Linda Bom Jesus VI) está quase sempre vazio, com no máximo dois ou três trabalhadores almoçando um "PF" requentado.

Ilustração Guazelli

Nesse dia não havia sequer trabalhadores, e ao me sentar numa das mesas do fundo e olhar pra rua distante —o Linda Frei Caneca é largo e comprido- fiquei em dúvida se estava protagonizando algum filme de terror do tipo "O Iluminado". A primeira cerveja apagou essa impressão negativa. Quando o garçom abaixou o volume da TV, relaxei e enterrei a cabeça no livro de Bolaño.

Vinte minutos depois chegou a puta. Ou uma mulher que poderia ser uma puta: roupa mínima de cores quentes, expressão cansada, rugas profundas, pulseiras em excesso, dedos grossos de quem fez trabalhos domésticos desde cedo, traquejo no trato com o garçom, disponibilidade e grana pra ir sozinha a um bar antes do pôr do sol (putas e poetas têm muitos pontos em comum) e fome e falta de frescura suficientes pra traçar um arroz, feijão, bife, dois ovos e batata frita sem piscar.

— Ô, gostosão, aumenta o som da TV pra mim?

E riu muitas vezes enquanto assistia a um desenho animado que eu não consegui reconhecer. Um riso manso, exausto ou limítrofe, o riso de alguém que não deixou nada de importante em casa, ou tem um filho em outro país, ou esqueceu que na próxima noite vai ter que encarar outro batalhão de homens tristes e nervosos, o riso do solitário a quem não faltam motivos pra chorar e por isso sabe mais do que qualquer um o que significa rir.

Quando o garçom levou seu prato vazio, ela já palitava os dentes e respondia mensagens no celular. Ria enquanto teclava. Mas esse era um riso deste mundo, cínico e divertido.

A conta ela pagou com um nota de cem reais. Deixou uma boa gorjeta pro garçom. Antes de ganhar a rua, deu uma reboladinha pros garçons, que, reunidos atrás do balcão, exaltavam, em voz alta o suficiente pra que ela ouvisse mas o patrão não, as qualidades da anatomia posterior da puta.

Eu pensei "um dia boto você numa crônica, gata", e anotei no caderno alguma besteira sobre os olhos castanhos daquela mulher. Depois voltei pra história do chileno, que dizia, citando Nicanor Parra, em tradução de Eduardo Brandão:

"Assim se vai a glória do mundo, sem glória, sem mundo, sem um miserável sanduíche de mortadela".


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