Folha de S. Paulo


Piadas e janelas

Há pelo menos duas coisas no mundo que nunca decepcionam: os começos das piadas e as janelas acesas.

A piada em si não importa tanto, pode ser mais ou menos engraçada, mas a primeira frase é sempre perfeita e inevitavelmente inaugura um universo único, surpreendente.

Exemplo: "Um vigário de um pequeno vilarejo tinha um canguru como mascote".

Não preciso saber mais nada sobre o vigário, vigários não me interessam; cidades pequenas em geral são sufocantes; cangurus me dão soluço mental; "mascote" é uma palavra ridícula.

Entretanto, os quatro elementos juntos numa única sentença funcionam --e é bom imaginar esse vigário interiorano que, em vez de cachorro, arranjou um canguru pra tomar conta e lhe fazer companhia. É como um tio solitário e triste, guardião de um segredo que um dia, com sorte, nos será revelado.

Outro exemplo: "Numa ilha deserta, havia três pessoas: um canadense, um alemão e um indiano".

Certo. Espero de todo coração que a convivência entre eles seja pacífica. Que a solidariedade prevaleça ao egoísmo. Que eles não deixem vir à tona o pior de cada um. Que não se destruam como ratos. E que tão depressa quanto possível sejam resgatados por um navio cheio de estudantes de medicina em férias num cruzeiro de Santos a Salvador.

Mas a pergunta que fica é uma só: como diabos eles foram parar numa ilha deserta? Diante desse enigma, seja lá o que vier depois será besteira --não vale a pena prestar atenção.

E o último: "O papagaio de uma senhora gorda adorava falar palavrão".

Pra mim é suficiente. Não quero que o papagaio pare de falar palavrão, nem que a senhora mude de casa ou aumente o volume do rádio. Muito menos gostaria que um gato aparecesse na história, um gato escroto ou um filho perdido ou um marido bêbado.

Torço pra que o papagaio continue vivo e desbocado, e que a senhora não engorde mas também não emagreça e jamais deixe de se espantar com as obscenidades disparadas pela ave absurda.

Com janelas acesas vistas da rua escura ocorre algo parecido. Elas me chamam, me fascinam, me hipnotizam. Me fazem acreditar que eu trocaria o pouco que tenho por uma chance de entrar ali, naquele espaço iluminado e aconchegante, de onde vem o som de talheres e vozes e algumas risadas.

Mas já aprendi que a promessa desse quadrado de luz aberto sobre a noite não se cumpre, e o melhor a fazer é observá-lo de fora, desejá-lo com fúria mas se manter na calçada, anotar cada imagem que ele sugere e reclama. E se pôr a escrever.


Endereço da página: