Folha de S. Paulo


A geografia dos livros

Não sei se é assim com vocês, mas sempre que começo a ler um livro a imagem de algum lugar conhecido se instala na minha cabeça --um quarto, uma cidade, uma rua-- e a partir daí toda a leitura se passa sobre essa paisagem de fundo.

Não importa se o livro tem cem ou mil páginas, se é uma história com neve ou sob o sol da Bahia. Basta pensar num quintal de Presidente Prudente de 1992 ao correr os olhos pelas primeiras linhas de um romance e pronto: a neve de "Crime e Castigo" vai cair nesse quintal e o sol de "Viva o Povo Brasileiro" vai nascer e morrer ali.

Como? Explico: o sol (ou a neve) brilha um pouquinho à frente da mangueira e do galinheiro do Oeste Paulista (onde chove), sem que os cenários se confundam. O quintal continua a ser o quintal da casa de um amigo do meu pai que está com câncer e que fomos visitar, e a neve (ou o sol) é mais ou menos aquela que Dostoiévski (ou João Ubaldo Ribeiro) descreveu.

Ilustração Guazzelli

Outro exemplo: li há alguns meses a biografia de Serge Gainsbourg, o compositor francês. E todo o esplendor e miséria de sua vida --a casa de paredes pretas abarrotada de obras de arte, as mulheres extraordinárias que amou, os porres nas boates do Quartier Latin, a decadência física precoce etc. --tudo, sem exceção, aconteceu na esquina da Cardeal Arcoverde com a Fradique Coutinho.

Sendo mais preciso: do lado esquerdo de quem desce a Cardeal e na calçada mais próxima do Largo da Batata.

O pior é que, como estive uma vez em Paris, ainda fiz um esforço pra substituir o bairro paulistano pelo sétimo arrondissement, reduto de Gainsbourg. Não adiantou. Resultado: na minha tosca configuração mental, Serge Gainsbourg é um ser franco-pinheirense, um gnomo bêbado que flutua por dois ou três metros quadrados da Vila Madalena.

Mais exemplos: "Laços de Família", de Clarice Lispector, se desenvolve inteiro na rua São Carlos do Pinhal, entre a Pamplona e a alameda Campinas; "Pauliceia Desvairada", em frente ao vão livre do Masp, acima dos carros, a dois metros do asfalto; "Palmeiras Selvagens", de William Faulkner, numa escada da Editora 34 (onde trabalhei); "A Estrada", de Cormac McCarthy, nos arredores do Zé do Laço, um posto de gasolina em ruínas (tem alguma coisa a ver com o enredo, pelo menos) a quatro quilômetros de Santo Anastácio.

Às vezes, antes mesmo de ler um livro, já adivinho a sua, digamos, "geografia íntima". "2666", de Roberto Bolaño, está cravado em algum ponto da rua Mário Ferraz, no Itaim; "Fausto", de Goethe, na fronteira (vista num mapa) de São Paulo com Minas Gerais; as batalhas épicas de "Guerra e Paz", de Tolstói, estão circunscritas à lavanderia do meu apartamento atual.

Por quê? Qual a estranha lei psicológica que rege a escolha dessas imagens?

Na maior parte dos casos, não faço ideia. Em outras, desconfio e invento hipóteses que me convencem pouco. E só muito de vez em quando sei realmente do que se trata --então finjo que não é comigo, deixo o rubor no rosto ir embora e aproveito pra ouvir de novo o samba "Acreditar", de Dona Ivone Lara, que Deus a abençoe.


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