Folha de S. Paulo


Melhor que fita cassete

Os mais velhos me contaram. Até meados dos 70, tão logo acabava um treino ou uma corrida, os repórteres esperavam os pilotos na saída dos boxes. Era ali que rolavam as entrevistas, em clima informal. Não raro, jornalistas batiam nas portas dos trailers e eram recebidos pelos próprios pilotos. Ou por suas esposas. Sim, eles dormiam nos circuitos.

Ecclestone e sua turma tomaram conta da F-1, tornaram tudo mais profissional e, em meio a um monte de mudanças, mudou também a relação dos pilotos com a imprensa. Surgiram os assessores, colocando-se como intermediários desse contato e filtrando informações. Tudo ficou menos espontâneo e mais robotizado.

Senna, por exemplo, nem sempre falava com os repórteres. Gravava suas impressões sobre o dia em uma fita cassete, e sua assessora apertava o play no meio de rodinhas de jornalistas ávidos por declarações. Uma vez por ano, concedia uma entrevista exclusiva aos principais veículos do Brasil. As sessões eram marcadas com meses de antecedência.

A coisa foi piorando, piorando... Lembro quando Montoya estreou na F-1, cercado por expectativas. Muitos acreditavam que estivesse ali o sujeito que, enfim, faria frente a Schumacher. Era desbocado, com um quê de arrogância e uma autoconfiança enorme. E carregava uma pitada de exotismo: um colombiano, coisa rara no automobilismo de ponta.

Pedi uma entrevista com ele no GP da Austrália. A Williams só respondeu na Bélgica, seis meses depois. Já não era novidade, já não era exótico e, principalmente, já sabíamos que não era um novo Schumacher. A entrevista já não valia tanto. Recusei, numa inútil tentativa de marcar posição.

Esse distanciamento não é o único culpado pela queda de popularidade da F-1, longe disso, mas certamente é um dos elementos que empurraram-na para baixo.

Pilotos tornaram-se cada vez mais inacessíveis, inatingíveis, inalcançáveis, enigmáticos. Tornaram-se cada vez mais estrelas, cada vez menos gente como a gente. E isso é péssimo, um tirombaço no pé.

Eis que, nesta semana, Verstappen usou as redes sociais para falar sobre o atual momento.

Sentado numa rede, na varanda de casa perto da fronteira da Holanda com a Bélgica, vestindo bermuda jeans e moleton sem nenhuma marca aparente, a nova sensação do esporte falou sobre seus últimos dias.

Classificou de "útil" os testes da semana passada em Barcelona e de "um pouco louco" o assédio na Holanda assim que voltou ao país, mais jovem piloto vencedor de um GP.

Não é a primeira vez que um piloto fala às redes sociais, é verdade. Mas a espontaneidade de Verstappen, com ar de inocência, é única.

Do alto dos seus 18 anos, surge como um garoto normal. Uma pessoa normal. Um de nós.

Até ontem, o vídeo já somava 222 mil visualizações só no Facebook.

Não é o clima dos anos 70, até por ser um depoimento e não uma entrevista com réplicas e tréplicas. Mas já é muito melhor do que a fita cassete de Senna ou o silêncio imposto pela Williams a Montoya.

Pode ser o início de algo legal. Que seja.


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