Folha de S. Paulo


Flecha de prata

Foi em 1997 ou 1998, em Indianápolis, numa visita à sede da PacWest. O dono era Bruce McCaw, bilionário cuja família fez fortuna com telefonia. Um apaixonado por corridas, que resolveu ter uma equipe na Indy.

Uma oficina como tantas outras no automobilismo. Havia um carro com patrocínio de cigarro, outro com patrocínio de uma fabricante de celulares, ambos em cavaletes sendo preparados para a próxima etapa. Nada demais.

Mas no canto...

Num canto da oficina, quase despercebido, estava o que deveria ser a grande atração. Uma joia prateada, que deveria estar sendo venerada em algum museu. Mas que estava ali, num insosso galpão pré-fabricado numa rua bucólica do meio-oeste americano.

"É a Mercedes do Fangio", alguém me disse.

Uma flecha de prata. O chassi 6 do modelo W196, que levou o argentino a duas vitórias em 1954 e ao bicampeonato: no velho Nurburgring, de quase 23 km, e em Bremgarten, na última vez em que a F-1 correu em solo suíço –no ano seguinte, após um acidente matar 84 pessoas em Le Mans, o automobilismo foi proibido por lá.

Duas provas históricas. Um carro histórico. Ali, no canto da oficina.

Lembrei-me dessa cena no domingo, com a festa da Mercedes em Sochi pela conquista do Mundial de Construtores.

Aquele ano, 1954, marcou a volta da Mercedes às pistas. Potência do automobilismo pré-F-1, entre as duas Grandes Guerras, a fábrica alemã estreou na categoria máxima naquela temporada disposta a recuperar o tempo perdido.

O sucesso foi instantâneo. Na primeira prova, fez pole position, melhor volta e dobradinha no pódio. Venceu outros três GPs no ano.

Em 1955, cinco vitórias em sete corridas. Novo título para Fangio. E nova saída de cena, motivada pelo trauma da tragédia de Le Mans: foi a Mercedes do francês Levegh que voou e se desintegrou sobre o público.

Vencer hoje é muito mais difícil. As equipes estão muito mais próximas. A dinheirama nivelou os times de ponta. Revoluções e surpresas técnicas são cada vez mais raras.

A equipe Mercedes voltou à F-1 em 2010, com um orçamento sem fundo. Só foi vencer em 2012, após 40 GPs. Só fez dobradinha em 2014, após 78 corridas.

Em Sochi, conquistou seu primeiro Mundial de Construtores –em 1955, o título não existia, uma injustiça histórica.

Levou 93 GPs para isso. Ou 105, somadas as corridas da primeira era.

É outro esporte. Mas exatos 60 anos depois, é um carro prateado que o domina.

Este título, merecidíssimo, é também, daquele velho W196.

(Em tempo: pesquisando na internet, descobri que a família McCaw o vendeu para um industrial alemão, que por sua vez o vendeu para o emir do Qatar. Ele se desfez da preciosidade em 2013, por US$ 29,7 milhões, recorde para um leilão de carros. O comprador é desconhecido. Não, não fui eu.)

fseixasf1@gmail.com


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