Folha de S. Paulo


O rato que ruge

FORAM NECESSÁRIOS nove meses de pressão diplomática para a Bolívia arrancar um aumento no preço do gás vendido à Petrobras. Já o Brasil tenta, desde 2004, tirar familiares de um jardineiro aposentado que resistem em deixar uma casinha localizada nos fundos da residência oficial do embaixador em La Paz. Enquanto o problema se arrasta, até uma marcenaria já montaram por ali.

O prosaico impasse não deixa de ser revelador sobre como age o Itamaraty sob Lula em relação a Evo Morales: condescendente com atos como a invasão militar de instalações da Petrobras e sem exigir contrapartidas de interesse nacional.

Fosse o Haiti, seria compreensível. Mas a Bolívia é a origem de cerca de 70% da cocaína consumida no Brasil, segundo a PF, enquanto a embaixada dos EUA em La Paz calcula que até 90% da droga lá produzida atravesse para o lado brasileiro. A lógica é rudimentar: o país de Morales se tornou o maior fornecedor da principal fonte de renda de organizações como o PCC e o Comando Vermelho.

Se o Brasil, traumatizado pela violência, tivesse uma política externa coerente, o narcotráfico -um fenômeno essencialmente transnacional- estaria no topo da lista. Mas no Itamaraty de Celso Amorim é praticamente ignorado.

No último encontro entre os dois presidentes, em Brasília, quando Lula atropelou a Petrobras para conceder um aumento "generoso" e "solidário" no preço do gás, o narcotráfico foi tratado tão discretamente que, se tivesse ficado de fora, ninguém teria notado.

Escondido no item 36 da declaração conjunta de 44 pontos, lê-se que os dois presidentes consideram o narcotráfico uma "grave ameaça" e se comprometem a fazer "o mais rápido possível" uma reunião da Comissão Mista Antidrogas Brasil-Bolívia. O senso de urgência é enganoso.

Essa reunião, até hoje sem data, já estava pré-agendada para o primeiro trimestre deste ano. De qualquer forma, trata-se de uma comissão baixo escalão, que não está à altura do problema. Melhor se o Brasil tivesse exigido a autorização para manter um adido da PF na Bolívia -pedida há oito meses, ainda sem resposta.

A cocaína é cada vez mais um tema de alto escalão. Morales se projetou defendendo cocaleiros como ele e foi reeleito líder máximo da categoria já na presidência. No governo, anunciou, entre outras medidas, o aumento da área legal de coca de 12 mil para 20 mil hectares.

A Bolívia alega que coca não é cocaína e quer industrializar a produção crescente. Os EUA dizem que não há mercado para isso e que a maioria das folhas vai para o narcotráfico. Já o Itamaraty, tão incisivo em condenar o enforcamento de Saddam e obcecado por uma "agenda positiva" de ranço ideológico, finge que não é com ele.

FABIANO MAISONNAVE é repórter de Mundo.


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