Folha de S. Paulo


É preciso regulamentar a venda de dados pessoais

Trezentos e cinquenta euros: é isso que o estudante holandês Shawn Buckles receberá por leiloar sua "alma de dados". Buckles a colocou à venda em março, prometendo compartilhar os mais íntimos detalhes de sua vida - de seus e-mails pessoais à sua ficha médica - com a pessoa que fizesse o lance mais alto. Pela metade de abril, ele havia recebido 53 lances.

Buckles - mais um ativista que um empreendedor - conseguiu conscientizar algumas pessoas sobre a crescente ameaça à nossa privacidade. Mas a provocação dele também suscita uma questão filosófica mais profunda: será que devemos ter liberdade para vender nossos dados mais íntimos? Ou os governos deveriam desencorajar e quem sabe proibir essas transações - talvez por motivos morais, como eles já fazem, por exemplo, ao não permitir que nos vendamos como escravos?

Buckles não está sozinho. No ano passado, Federico Zannier, de Brooklyn, recorreu ao Kickstarter para uma experiência parecida. Quem contribuísse com US$ 2 receberia acesso a todo um dia de seus dados (cerca de 70 sites visitados, 500 imagens de tela e 500 fotos com a Webcam), enquanto uma contribuição de US$ 200 resultaria na obtenção de 50 mil arquivos obtidos ao longo de diversos meses. Zannier estava vendendo dados que já haviam sido coligidos, enquanto Buckles está vendendo dados que serão coligidos nos próximos 12 meses.

Como os corteses futurólogos do Fórum Econômico Mundial de Davos apontaram em um relatório de 2011, nossos dados pessoais estão rapidamente se tornando uma nova "categoria de ativo". Não surpreende que usuários individuais como Buckles e Zannier prefiram ser donos de seus ativos de dados, em lugar de permitir que o Google e o Facebook os explorem gratuitamente.

Libertar nossos dados dos gigantes do Vale do Silício é uma empreitada nobre, especialmente se levarmos em conta o imenso valor social que alguns desses dados têm. Não deveríamos desencorajar usuários individuais de encontrar usos socialmente benéficos para seus dados. Por que, afinal, impedir pessoas que desejem doar suas fichas médicas a universidades ou hospitais a fim de contribuir para descobertas científicas? Idealmente, deveríamos querer que as pessoas o façam por razões humanitárias, mas há exceções concebíveis (por exemplo, em casos onde o fator tempo importa) nas quais uma promessa de compensação monetária imediata poderia acelerar o trabalho.

No entanto, existe uma diferença entre fornecer dados pessoais para fins humanitários e vendê-los a anunciantes, agências e outros tipos de comerciantes de dados. Quando entregamos nossos dados a cientistas, não antecipamos que essa decisão venha a ter efeito imediato sobre nossas vidas. Em contraste, a maior parte dos dados que entregamos a empresas privadas alteram nossa vida; eles são passíveis de ação imediata e podem afetar imediatamente o curso de nossas vidas - mesmo que as mudanças que deflagrem sejam praticamente imperceptíveis. Permitimos que o nosso smartphone conheça nossa localização - e os anúncios que recebemos se tornam mais relevantes. Buscamos na Internet por informações sobre um suplemento vitamínico qualquer - e depois disso anúncios sobre perda de peso nos acompanharão aonde quer que vamos. Procuramos por certos produtos online -e as companhias com isso inferem alguma coisa sobre nossa saúde ou nossos planos para o futuro.

Boa parte dos dados pessoais tem essa importante qualidade de alteração da vida: sua estreita integração em tempo real a veículos comerciais que estruturam nossa vida corriqueira e cotidiana - de restaurantes a sites de viagem, passando pelo varejo - responde não só por escolhas específicas que fazemos (ou seja, comprar uma Coca-Cola ou uma Pepsi) mas pelo tipo de ansiedade e aspiração que determina aquilo que fazemos e desejamos, para começar (por exemplo, meu smartphone percebe que posso estar com sede, me exibe um anúncio e de repente me apanho com sede - mas será que eu estava mesmo com sede originalmente?)

Suponha que Shawn Buckles, tendo vendido seus dados pessoais, decida mudar de estilo de vida. Talvez ele esteja pensando em se tornar vegetariano, e por isso recorre a um serviço de buscas e faz a busca "devo me tornar vegetariano?" Não importa que site ele venha a descobrir nos retornos: ele revelou que uma parte anteriormente estável de seu estilo de vida agora está aberta a mudanças. Isso deflagra numerosos eventos que podem parecer aleatórios mas na verdade são todos organizados eficientemente por companhias concorrentes: o supermercado de Shawn começa a lhe oferecer descontos personalizados na compra de legumes, enquanto a churrascaria do bairro em que ele mora tenta atrai-lo oferecendo cupons para um saboroso jantar de carne. Tudo isso pode estar vinculado a tempos e locais específicos - graças ao seu smartphone. (O Field Trip, um app do Google para smartphones, já pode alertar seus usuários sobre descontos e ofertas especiais em estabelecimentos próximos.)

Não faz diferença que Shawn decida se tornar vegetariano ou que continue carnívoro; sua decisão nominalmente autônoma foi influenciada por fatores que ele nem mesmo percebeu, e muito menos pôde desconsiderar ou compensar. Talvez ele suspeite de que algo assim está acontecendo, mas não é capaz de perceber -e muito menos decifrar - as forças causais em operação. Pode-se imaginar a espécie de empurrãozinho que Shawn receberia se o governo entrasse na parada e decidisse agir quanto ao medo da obesidade que ele sente, buscando orientá-lo via smartphone à compra de legumes e verduras, em lugar de carne.

É verdade que, graças a informações em tempo real, nosso mundo parece muito mais plástico, interativo e individualizado do que parecia quatro décadas atrás: hoje esperamos tratamento personalizado, publicidade personalizada, entretenimento personalizado. Há muito a celebrar, quanto a isso. Mas também há motivos de preocupação: se tínhamos preferências bem formadas e eternas, esses ajustes de nossos desejos em tempo real serão bem vindos. Mas não é assim que somos - e provavelmente não é assim que desejamos ser: queremos preservar espaços puramente experimentais nos quais possamos fazer planos de vida, reconsiderar valores, abandonar projetos velhos e iniciar novos.

Essa introspecção pode ser um processo muito demorado. Mas assim que revelamos que estamos ingressando nesse espaço experimental - por meio de nossos termos de busca, de um ato falho freudiano em um e-mail, de um surto emocional aleatório capturado por nossos smart glasses -, nossa autonomia é sequestrada, porque a imensa plasticidade de nosso ambiente nos apresenta opções que buscam nos empurrar em direções favoráveis aos anunciantes (e, cada vez mais, às autoridades regulatórias), em lugar de permitir que sigamos na direção que teríamos escolhido de outra forma.

Vender em bloco os nossos dados íntimos é encolher ao mínimo esse espaço experimental. É abrir mão completamente de nossa busca de autonomia, aceitando uma vida na qual a maior parte das escolhas existenciais de nossas vidas são determinadas ou pelas forças de mercado ou por qualquer que seja a guerra - seja contra a obesidade, seja contra a mudança de clima - em que o governo (em lugar de grandes empresas) deseja nos alistar. Nesse mundo, determinar se nos tornaremos ou não vegetarianos - ou mesmo se consideraremos ou não essa possibilidade - depende de que agentes - as churrascarias, os supermercados, os burocratas - tenham mais a ganhar com a mudança.

É verdade que na ausência de regulamentação mais rigorosa, muitos de nossos dados pessoais vazariam de qualquer forma, deflagrando muitas das atividades acima descritas. Mas isso não deveria nos levar a aceitar inquestionavelmente o argumento de que dados pessoais são como qualquer outra commodity e que a maioria de nossos problemas digitais desapareceria se apenas, em lugar de gigantescos monopólios de dados como o Google e o Facebook, tivéssemos um exército de pequenos empresários dos dados. Nossos dados são a essência de nossa humanidade - vendê-los significa aceitar se tornar um outdoor ambulante interativo.

Não permitimos que pessoas exerçam seu direito à autonomia a fim de abrir mão desse direito ao se venderem como escravas. Por que abrir uma exceção para aqueles que desejam vender seu intelecto e não seus corpos?

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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