Folha de S. Paulo


O que faz de uma criança um pequeno leitor

Adriano Vizoni - 11.fev.17i/Folhapress
SAO PAULO - SP - BRASIL, 11-02-2017, 10h00: LEITURA PARA BEBES. A atividade
Atividade de leitura para crianças em parque em SP

Quando soubemos que nosso primeiro filho começaria a ter contato com a alfabetização aos quatro anos —ele é de junho, portanto, um dos menores da turma—, tomamos um susto grande.

Nossa primeira insegurança, seguida de muitas outras, foi: mas ele ainda nem consegue firmar o lápis na mãozinha, como já vai aprender a ler e a escrever?

Por ter passado por isso, acho que entendo bem o receio que alguns especialistas manifestaram sobre a proposta do governo de antecipar a alfabetização.

A terceira versão da Base Nacional Curricular Comum —documento que fornece diretrizes nacionais para o currículo escolar, apresentado na semana passada— estabelece que o processo de aquisição da leitura e da escrita esteja concluído até o fim do segundo ano do ensino fundamental (portanto, por volta dos sete anos).

Até então, prevalecia a orientação para que a alfabetização se estendesse ao terceiro ano. Mas muitas escolas privadas já optavam por adiantá-la.

A alfabetização do Dante, meu menino maior, já avançou bastante. Agora, meu filho do meio, Andrés, que acabou de completar cinco anos, começa a passar pelo mesmo ritual.

Mas ainda não consigo palpitar sobre a tal idade adequada. Talvez essa marca ideal simplesmente não exista porque cada criança tem seu próprio tempo —que deve, independentemente de qualquer meta, ser respeitado.

O que posso dizer, como mãe, é que há poucas coisas mais belas do que acompanhar a aquisição da linguagem de uma criança. As primeiras palavras balbuciadas, seguidas das conexões de pensamento e, mais tarde, a conquista da leitura.

Aqui, já estamos nessa fase. Dante é um pequeno grande leitor, devorador de diversos gêneros, como os gibis da "Turma da Mônica", os "Diários de um banana", a coleção do "Capitão Cueca" e os "Meninos maluquinhos". Até nossos livros ele já pede para espiar.

Claro que, sem a alfabetização, isso não seria possível. Ela é fator primordial para a leitura, mas não é suficiente.

E esse é o ponto ainda pouco presente no debate público sobre educação. Não só no que se refere à leitura, embora ela sirva como ótimo exemplo.

É dever da escola fomentá-la. Mas esse é um hábito que se consolida em casa.

Uma enquete da organização britânica National Literacy Trust feita com 17 mil alunos dos 8 aos 16 anos mostrou que, entre aqueles que relataram receber muito incentivo dos pais para ler, o percentual dos que afirmaram desfrutar muito do hábito era de cerca de 65%. Essa fatia caía para menos de 40% entre os estudantes que diziam não ser estimulados pela família.

A Fundação Itaú Social mapeou a literatura acadêmica internacional sobre o assunto. Em um relatório, a instituição aponta os muitos benefícios comprovados da leitura habitual feita por adultos para crianças. Quando frequente, na primeira infância, esse processo reduz, por exemplo, os índices de repetência por volta dos 14 anos.

A imagem de pais lendo para —ou com— os filhos é também tocante. Como bem descreveu uma amiga que é grande leitora –e cujos filhos idem—, trata-se de um momento especial de afeto.

Mas, como muitas coisas envolvidas na maternidade/paternidade, a prática da leitura para os filhos, depois de um dia cheio, pode ser uma batalha contra nosso cansaço.

Eu me divirto bastante lendo para meus meninos, mas admito que, em muitos dias ruins, escapo da rotina. Já me peguei (e flagrei meu marido também) negociando a troca de títulos como o fantástico "João Esperto Leva o Presente Certo" —que foi hit aqui em casa— por outro mais simples e rápido como "Charlie e Lola".

Se isso acontece em famílias privilegiadas em termos de renda e escolaridade, imaginem o desafio de famílias de menor nível socioeconômico, que vão de trabalhos fisicamente esgotadores e longas viagens de transporte público à dura realidade de não ter dinheiro para comprar livros ou mesmo letramento suficiente para ler.

Daí a importância que a política pública vá muito além dos muros escolares. Em prol do combate à enorme desigualdade educacional brasileira, que inclui a alfabetização muito mais tardia de crianças de baixa renda, antecipar esse processo nas escolas públicas pode ser uma boa ideia.

Mas é preciso, em paralelo, atingir e apoiar as famílias mais carentes, com infraestrutura acessível —como bibliotecas públicas—, a organização de atividades inspiradoras e muita, mas muita informação e orientação.


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