Folha de S. Paulo


O general Lee não é problema, Trump é

Uma estátua ruinzinha do general Robert Lee, o venerado comandante das tropas rebeldes durante a guerra da Secessão (1861-1865) parece ter posto fogo nos Estados Unidos. Não é bem assim, quem está pondo fogo nos Estados Unidos e no mundo é Donald Trump. O racismo, a Ku Klux Klan e os supremacistas estão aí há tempo. A novidade chama-se Trump.

De muitos pontos de Washington pode-se ver uma mansão branca, tipo "E o Vento Levou...", numa das colinas de Arlington. Ninguém falou dela nos últimos dias, mas ali está o "Robert Lee Memorial". Nela viviam o general e sua mulher. Quando ele foi comandar os rebeldes, a casa foi ocupada pelo Exército da União e, aos poucos, a enorme fazenda transformou-se em cemitério das tropas do norte. Vingança perfeita: minha tropa enterrada na tua casa.

Com o tempo, a violência política foi açucarada e até mesmo deturpada. Arlington tornou-se o cemitério nacional e lá estão enterrados não só soldados de todas as guerras (inclusive tropas de Lee), como também civis, entre os quais John Kennedy e sua mulher. Até hoje Arlington não lembra os soldados negros do norte, apesar de haver um monumento aos rebeldes. Só em 1948 os soldados negros foram enterrados junto aos brancos. Antes, ficavam em lotes segregados.

Para muitos americanos a Guerra Civil continua. No museu da cidadezinha onde Lee se rendeu, uma guia informava que "infelizmente" ele não conseguira atravessar uma ponte. Infelizmente? O general vitorioso, Ulysses Grant, tratou Lee com magnanimidade, alimentando sua tropa faminta e permitindo que surgisse o mito do nobre combatente. Vá lá, mas ele perdeu a maior batalha de sua carreira (Gettysburg).

As estátuas dos generais confederados e o uso da bandeira rebelde nos Estados do Sul sempre tiveram um toque racista, mas há mais de 50 anos as coisas iam bem. No antigo ninho segregacionista de Montgomery, no Alabama, há a avenida Jefferson Davis, o presidente dos Estados Confederados. Ela cruza com a avenida Rosa Parks, a costureira negra que em 1955 recusou-se a sair de um assento de ônibus destinado aos brancos e acabou presa. Começou um boicote ao sistema de transportes e, nele, surgiu o pastor Martin Luther King.

Nunca houve confusão nessas esquinas, mas ninguém contava que um dia aparecesse Donald Trump.

Os mexicanos e os russos deram suas aulas

Brigar com estátuas é uma forma de militância radical que não faz mal a ninguém, a não ser que apareça uma turma como a que foi a Charlottesville. Aqui vão alguns exemplos para mostrar que, havendo inteligência, a briga acaba. Desde que não haja um Trump no lance.

O que fazer, na Cidade do México, com a estátua equestre do imperador espanhol Carlos 4º, cujo cavalo pisoteia símbolos da cultura azteca?

Simples. Bastou por uma placa no pedestal: "O México conserva esta obra como um monumento à arte".

Em Moscou, uma cidade repleta de estátuas de líderes bolcheviques, o que fazer com Lênin, Marx e Stalin?

Foram todos para o gramado de um parque público. Uns de pé, outros deitados. Stalin, sem o nariz. (Os bolcheviques fizeram de tudo, mas não mexeram com a estátua do czar Pedro, o Grande, em São Petersburgo. Ele comandava execuções e torturas públicas.)

A brava gente brasileira não avacalha estátuas, mas faz das suas. Os cariocas que andam pela praça Tiradentes não se dão conta da violência retórica do logradouro. No meio da praça está uma linda estátua equestre de d. Pedro 1º. Sua avó, d. Maria 1ª, foi quem mandou enforcar e esquartejar o inconfidente.

Batizada no Império como praça da Constituição, teve seu nome mudado na República e hoje o neto da Louca enfeita a praça do condenado.

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