Folha de S. Paulo


À espera da história

NESTES seus últimos meses de governo, a administração Bush passa a enfrentar o inevitável balanço da história.

Embrenhado na Guerra do Iraque há cinco anos, o país está entrando na zona de recessão com déficits crescentes, e o presidente amarga um dos piores índices de popularidade. Seus adversários protestam contra a legislação que tolera a tortura e arromba a privacidade.

O governo, é claro, tem outra avaliação. Durante sua visita ao Brasil, nesta semana, a secretária de Estado, Condoleezza Rice, não evitou comentar sobre o legado da era Bush. O que é classificado como luta pela "democracia" e combate ao terror seriam pontos centrais dessa herança.

Nesse raciocínio, os ataques do 11 de Setembro e a necessidade de evitar -a qualquer custo- novas agressões são o pano de fundo. Todas as decisões de política interna e externa se justificam em torno disso. Na visão de Rice, todos os dias são 12 de setembro. Isso talvez explique a perda de relevo de conceitos como direitos humanos e soberanias nacionais -dos outros.

De fato, a força avassaladora desse discurso sobre o medo e a necessidade de ações preventivas pode ajudar a entender a divisão do país em torno dos candidatos ao pleito de novembro. Também por isso, entre outros fatores, não há multidões nas ruas contra a guerra, como há exatos 40 anos. E o candidato republicano, embora não compartilhe das mesmas idéias reinantes na Casa Branca de hoje, tem chances razoáveis de vitória.

Em favor dos EUA, Rice gosta de citar a ajuda aos países pobres da África. Ao todo, a cifra representa dez dias de gastos no Iraque, conforme os números do Nobel Joseph Stiglitz. A guerra até hoje já custou US$ 3 trilhões, mais que os 12 anos de Vietnã e o dobro do despendido na Coréia. E há ainda os problemas intrincados e infindáveis no Oriente Médio.

Nesse quadro, a situação na América Latina ocupa um lugar secundário. A secretária de Estado reconhece que a história da relação entre os Estados Unidos e a região permitiu que vicejasse por aqui uma boa dose de antiamericanismo, talvez arrefecido apenas durante os breves anos Kennedy.

Cautelosa nos adjetivos direcionados à Venezuela, e com elogios calculados ao Brasil, ela não esconde seu desapontamento com a Argentina -ruidosamente evitada nessa viagem. Afinal, lembra que pessoalmente fez gestões para ajudar o país vizinho quando ele quebrou em 2001. Nos últimos tempos, o alardeado Consenso de Washington e a pressão pelo livre comércio azedaram os ânimos em vários setores. Tudo isso já faz parte da história.

E apenas o seu olhar distanciado colocará o governo de Bush e Rice no seu devido lugar.

ELEONORA DE LUCENA é editora-executiva da Folha.


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