Folha de S. Paulo


Seleção natural e darwinismo social

Um em cada três jovens de países da África subsaariana vai morrer de Aids. Só no ano passado, 2,2 milhões de pessoas morreram por causa da síndrome na região, que concentra 70% dos portadores do vírus HIV no mundo. Em Botsuana, no sul, onde 35% da população adulta está contaminada, dois terços dos que hoje têm 15 anos vão morrer da doença.
É o pior lugar para nascer. Riscada do mapa econômico, a África virou a latrina do mundo. Lá, já existiram civilizações fortes, impérios mesmo. Em pleno subsaara, um exemplo foi o império do Mali, que floresceu em 1300. Rico em ouro, atraía comerciantes que chegavam a pagar quatro vezes a mais pelo sal quando entravam em seu cobiçado território.
Foi tudo destruído. Centenas de guerras e tesouros saqueados. Depois, veio a exportação em massa de escravos, com a retalhação de tribos. Mais tarde, a colonização e a espoliação européias, que desenharam a geografia política do lugar de acordo com seus interesses econômicos.
Nessa fase, europeus tentaram buscar justificativa moral para sua exploração africana nas idéias de Charles Darwin. Num malabarismo intelectual sujo, transferiram a teoria da seleção natural (os mais aptos é que sobrevivem e vencem) para a sociologia. Criaram o "darwinismo social", que, depois, desembocou no racismo.
É curioso que os números sobre a tragédia da Aids na África de hoje tenham sido divulgados ao mesmo tempo que a decifração do genoma humano. Feito histórico da ciência, a descoberta sobre o código genético enterra qualquer teoria racista. Mas, ao mesmo tempo, traz à tona todo um debate moral e ético sobre "seleção" da espécie que faria Darwin se arrepiar.
Bill Clinton deu um tom solene ao anúncio e liberou o imaginário sobre o futuro da espécie humana: gente próxima da perfeição, resistente a doenças e com as características físicas que "o mercado" ditar. O que não ficou claro é como será o comando desse processo e a quais interesses estará submetido. A disputa comercial já explicitada provoca preocupações.
É óbvio que o avanço científico deve ser comemorado e estimulado. Mas deve ser acompanhado do debate sobre os desdobramentos sociais. Será possível garantir a universalização das conquistas da medicina que ocorrerão após o mapeamento genético? Nesse capítulo sobre igualdade, a história tem sido cruel.
Basta olhar as últimas estatísticas divulgadas pela ONU. Em 1960, os 20% mais ricos do mundo tinham renda 30 vezes maior que os 20% mais pobres. Em 95, a diferença aumentou para 82 vezes. O número de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia no mundo aumentou 20% entre 95 e hoje (a população cresceu 7% no período).
O mundo está mais desigual. A África que morre de Aids é apenas a ponta mais pobre e estraçalhada dessa situação. Enquanto o Norte rico e avançado anuncia a revolução da genética e a provável cura de doenças, outra parte patina e afunda, sofrendo uma "seleção econômica" terrível.
O Brasil está no meio do caminho. Um dos líderes da concentração de renda, convive com a riqueza cercada de áfricas por todos os lados. Seria bom que o progresso da biologia chegasse até a política e o social. Sem seleção de "espécies".


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