Folha de S. Paulo


Trabalho alienado

Fernando Pessoa ganhou a vida como tradutor de cartas comerciais; T. S. Eliot como bancário. John Stuart Mill dava expediente na East India Company, e Charles Peirce, no instituto de geografia americano. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade foram servidores públicos exemplares.

O que é trabalho? O exemplo desses criadores –entre tantos que poderiam ser lembrados– é sugestivo. Embora premidos a trabalhar para pagar as contas no fim do mês, eles souberam encontrar no seu trabalho fora do emprego –independente de paga e, em alguns casos, até do apreço dos contemporâneos– uma razão de viver.

Isso permite distinguir duas concepções discrepantes: o trabalho como ganha-pão, exercido sob a pressão da necessidade, e o trabalho como vocação, ou seja, como uma atividade voluntária, não necessariamente remunerada, por meio da qual se busca dar vazão ao impulso criador e alcançar um sentido de realização pessoal.

O ideal de um mundo liberto do trabalho imposto de fora, como obrigação alheia à livre escolha individual, tem uma longa história. A formulação clássica é devida a Marx.

Na sociedade comunista, afiançava ele na "Crítica ao Programa de Gotha" de 1875, "quando tiver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho", o trabalho deixará de ser "apenas um meio de vida para tornar-se, ele próprio, a primeira necessidade vital".

O comunismo, sabemos, não honrou a promessa. Ao contrário, levou a alienação do trabalho a novos píncaros, como no conhecido lamento do funcionário soviético –"nós fingimos que trabalhamos e eles fingem que nos pagam". Nada disso, porém, diminui o problema ou faz dele uma prerrogativa do marxismo.

Como já alertava Mill em 1848: "Trabalhar pelo preço oferecido por outro e para o lucro deste, sem interesse algum pelo trabalho –sendo o preço do trabalho ajustado pela competição hostil, com um lado pedindo o mais possível e o outro pagando o menos que puder– não é, mesmo quando os salários são elevados, um estado satisfatório para seres humanos que deixaram de julgar-se inferiores àqueles a quem servem".

O espantoso é que, não obstante o furioso aumento da produtividade desde o século 19 –o que poderia, em tese, reduzir a necessidade do trabalho alienado–, estamos hoje ainda mais distantes do ideal projetado pelos economistas clássicos do que quando eles o formularam.

A escalada do consumo atropelou o valor da autonomia na vida prática e engoliu o sonho do trabalho como esfera de autorrealização humana. O ter –e não o fazer– nos define. Não é à toa que o sentimento do vazio, em meio à toda tecnologia e abundância ocidentais, só faz crescer.


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