Folha de S. Paulo


O mosaico humano

Não existe Denise. Existe Denise-Fulano, Denise-Cicrano, Denise-Beltrano. Somos o que somos a partir dos outros. E até tentamos cumprir com o papel que construímos para cada um de nossos interlocutores.

Foi no meio de um ensaio que ouvi isto do mestre Fauzi Arap. Me fez entender muita coisa, mas só entendi realmente o ser multifacetado que somos quando ele nos deixou.

Na sala de seu velório, em meio às lágrimas secas, começamos aquela conversinha doída onde remoemos particularidades da personalidade do ente querido para chorar mais um pouquinho. Num banco, nós do teatro. Noutro, irmãos, sobrinhos e amigos da família. E o Fauzi, que tanto se reservou, pela primeira vez, apareceu inteiro: o que nós sabíamos dele, o que eles sabiam dele e o que ambos os lados jamais poderiam suspeitar fazer parte daquele que foi um dos maiores mestres do nosso teatro. Na cerimônia do adeus, ampliamos ainda mais o gênio de personalidade única que ele foi para cada um de nós.

Zé Vicente
Ilustração de Zé Vicente para coluna de Denise Fraga na sãopaulo de 28/02 - O mosaico humano

Esta semana, voltei a me lembrar dele e de sua tese sobre o mosaico humano. Perdemos Tio Ezio. Tio Ezio sempre viveu sozinho. Solteiro convicto, morou a vida toda longe da família, viveu em várias cidades, fez de tudo um pouco e com muita intensidade. Dono de um humor ácido e delicioso, pouco nos deu o privilégio de sua presença. Escolheu ser livre.

Na tarde de sábado, o telefone tocou com alguém avisando sobre o seu AVC. Era necessária a decisão da família sobre uma arriscada cirurgia. Não deu tempo de decidir. Ninguém nunca decidiu por ele. Tio Ezio escolheu partir.

Ainda no hospital, algumas peças começaram a ampliar o seu mosaico. Não sabíamos dizer que remédios tomava. Sua faxineira sabia. O amigo que nos telefonou era, na verdade, um irmão e agiu como tal em tudo que foi preciso. E, mais tarde, no velório, foram se apresentando de mansinho outros tantos desconhecidos que constituíam a livre família de meu tio. Cada um trazendo a sua parte do mosaico. Na infalível conversinha em meio às lágrimas secas, mais e mais detalhes nos faziam ver o quanto era querido o nosso sumido Tio Ezio.

Cheguei em casa, investiguei sua rede social e chorei mais um pouquinho a saudade de um tio que eu nunca conheci e que me foi apresentado no dia em que o perdi.


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