Folha de S. Paulo


Apenas um café

Acordei de manhãzinha sentindo cheiro de café. Virei pro lado e voltei a dormir. No outro dia, a mesma coisa. Assim foi por vários dias até que me dei conta de que não acordava sentindo o cheiro do café, mas sim que era acordada por ele. O velho coador de pano da minha avó talvez tenha deixado cafeína suficiente em minha memória para que eu fosse despertada em meu quarto pelo cheiro do café passado na cozinha.

Ilustração Zé Vicente

Adoro café. Quando cheguei a São Paulo, passei a pedí-lo carioca, sua versão mais fraca. Um dia, esqueci do complemento e o moço do balcão, que já me conhecia, perguntou:

— Carioca?

— Sou — respondi, distraída.

Pedir um café já é parte da existência, é hábito, é ritual inconsciente.

Foi assim que na semana passada eu me sentei numa mesa para uma reuniãozinha e imediatamente pedi o meu café.

— Vou trazer o cardápio.

— Não precisa. Eu só quero um café, por favor.

— Vou lhe trazer o cardápio.

Foi colocado em minhas mãos um cardápio de cafés. O mundo está ficando mesmo muito complicado! Não sabia o que fazer. Queria provar todos! Eu adoro café! Mas uma xícara de café é um dos poucos portos que ainda temos neste caleidoscópio ciclônico que inventamos pra viver e não gostaria que também isso passasse por uma reforma toda semana! É porto. Quero reconhecê-lo e senti-lo tal como é a cada vez. Como um copo d'água. Meu Deus!

Será que vão fazer isso com a água também?! Teremos que escolher que água vamos querer tomar? Já não basta o que aconteceu com o nosso vinho? Adoro um bom vinho, mas me aflijo um pouco quando alguém na mesa ousa chamá-lo de selvagem ou impetuoso. Minha alma se agita no vazio na busca de tanta particularidade para coisas tão essenciais. "Escolha é perda." Li uma vez essa frase e ela me conforta muito em momentos de indecisão. Devolvi o cardápio ao garçom pedindo só um café normal.

— Mas qual normal a senhora gostaria?

— Aquele! — apontei pra mesa do lado.

Decidi perder todas as possíveis variações do grão pra ganhar de volta o meu café. O normal, o qualquer um, o que já era carioca.


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