Folha de S. Paulo


Histórias tatuadas

Tenho dois pedaços de grafite no corpo. Grafite mesmo. De lápis. O primeiro foi resultado de uma flechada dada por minha prima Fernanda com uma lapiseira Compactor. Fui sacudir o apontador no quintal e, quando virei, só vi a pequena travessa mirando a lapiseira recém-apontada na minha direção. Eu tinha onze anos de idade e um fio de sangue correu esquisito de um ponto cinza em minha testa. Minha tia me levou pro hospital, desesperada: "Graças a Deus não foi na vista!". Até hoje carrego entre as primeiras raízes de meus cabelos um engraçado ponto azul de grafite esfarelado pelo tempo. É uma boa história. Não é qualquer um que tem um grafite na testa. E eu ainda tenho dois. O outro pedaço mora em minha mão direita e fui eu mesma que enfiei. Estava distraída na aula, equilibrava o lápis entre as mãos espalmadas e, de repente, o sangue, a vergonha e a tentativa de esconder o absurdo de ter furado a própria mão com um lápis. Olho-o agora. Este pálido pontinho azul me enche de amor por minha infância tímida.

Não lutei por minhas cicatrizes, mas amo as que tenho. Impossível esquecer a história de uma cicatriz. Tenho ainda a marca da cesárea por onde saíram meus dois filhos, um cano quente de moto na batata da perna, um ferro de passar na coxa e a marca de um Babyliss quente no braço. Cada uma com meia página de história.

Dia desses fiquei olhando pro meu filho Pedro deitado em meu colo e pensei para quantas mulheres ele contará do seu tombo de chupeta aos dois anos. Corria pelo shopping, caiu de boca e a chupeta cortou-lhe o bigode. A eterna coriza do alérgico menino paulistano impediu a boa cicatrização e este rapaz, que cresce assustadoramente ao meu lado, poderá para sempre enternecer suas namoradas com esta doce historinha. Meu choro desesperado carregando o pequeno com a boca cheia de sangue talvez nem seja mencionado antes de ele receber um beijo em sua história tatuada.

Ilustração Zé Vicente

Endereço da página: