Folha de S. Paulo


O que nos une

Minha amiga espanhola sabe cantar "Fulano roubou pão na casa do João...". Em espanhol, naturalmente.

Estávamos numa roda de amigos, começamos a cantar, nem lembro o porquê, e lá veio ela com a canção inteira na ponta de sua língua estrangeira. Incrível!

Perguntei quem a tinha ensinado, e ela disse que sabia a brincadeira desde criancinha. Quem será que a ensinou? Qual será a linha imaginária que liga sua mãe, em seu remoto povoado do País Basco, à minha tia Sofia, num subúrbio carioca, para ambas terem ensinado tal cançãozinha às suas meninas?

Somos uma rede. Uma rede invisível e poderosa. Existe algo que nos une misteriosamente, atravessando tempos e mares, independente de qualquer tecnologia.

Ilustração Zé Vicente

De vez em quando, algumas coisas nos fornecem flashes de lucidez de nosso pertencimento à humanidade.

Senti isso naquela famosa manhã do 11 de Setembro. Estava parada no trânsito quando liguei displicentemente o rádio do carro e estranhei o tom desesperado do locutor. O primeiro avião já havia atingido uma das Torres Gêmeas, e não se sabia quantos aviões ainda estariam no ar mirando seus alvos.

Achei que o mundo ia acabar, que começava ali a terceira guerra mundial, mas, apesar do meu estarrecimento, me lembro de ouvir a descrição de toda a tragédia invadida pela tal sensação. Aquele momento me credenciava como personagem da história deste planeta junto com meus iguais da China, Noruega e Cuiabá.

Penso muitas vezes nesta rede. No futuro, possivelmente, ela será quase palpável. Além de mapa astral, também poderemos fazer nossos mapas de trânsito sobre a Terra na medida em que, desde a primeira infância, estaremos com nossos smartphones nas mãos para o devido monitoramento.

Seria divertido saber quantas vezes quase esbarrei no meu marido antes de conhecê-lo. Quer brincar de pertencer? Pergunte numa roda de amigos o que estavam fazendo no dia em que o Senna morreu. Ninguém esquece. E você se lembra que de alguma forma não está sozinho.


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