Folha de S. Paulo


Corajosos tecladores

Recebi um torpedo:

-"Posso te ligar?".

É curioso como pouco a pouco vai se tornando invasivo simplesmente telefonar pra alguém. As mensagens de texto entraram com tal força em nossas vidas, pessoas lidas em letras, ícones e interjeições, que surpreender uma pessoa num alô é quase ter a chance de vê-la nua.

Rapidamente nos adaptamos ao confortável esconderijo da palavra escrita e fomos mudando nossos hábitos de convívio numa velocidade assustadora. Dia após dia, nossos dedos ganham destreza e coragem nos teclados enquanto nossa língua gagueja preguiçosa num simples telefonema pra peixaria.

"Manda um e-mail!" --grita o peixeiro. E nós mandamos a lista, abandonando pra sempre a possibilidade de ganhar de brinde a receita de moqueca da mãe dele.

Mas a preguiça verbal não para por aí. "Não falei na hora, mas vou mandar um e-mail." Quem de nós ainda não ouviu frases assim? O conforto de nossas deliciosas trincheiras azuis inauguraram uma nova categoria: os corajosos tecladores. Falam de preservação da privacidade, do tempo de cada um, citam até a gentileza, enfim, cercam-se de boas intenções para esconder o maior aliado do boom da comunicação virtual: a covardia.

Ilustração Zé Vicente

O próprio debate das biografias seria outro se não fosse a "coragem" dos tecladores. A fronteira entre a liberdade de expressão e a ética gera mesmo uma discussão fascinante, daí todo o blá-blá-blá dos últimos dias.

Seria uma incrível oportunidade de reflexão coletiva sobre mídia, liberdade, educação e respeito, não fossem as frases de grande valor midiático disparadas por alguns corajosos tecladores que se rendem a trocadilhos duvidosos como "afasta de mim este cale-se" ou ainda, numa redução simplista, aliam a imagem do velho Chico à palavra censor.

Francamente! Haja coragem! Enquanto isso, fico aqui em fórum interno, oscilando os pratos dessa balança, tamanha a complexidade do assunto. Mas passando os olhos na lista de países onde as biografias são totalmente liberadas, um ponto em comum me põe uma pulga atrás da orelha: educação de boa qualidade. Só um detalhe.


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