Folha de S. Paulo


O inimaginável

Gritei quando a minha manicure tirou um bife do meu dedão do pé. Pra aliviar o clima, fiz uma piadinha: "Imagina na Copa!".

De tanto falar em congestionamentos, filas e aeroportos, permiti que a expressão mais usada dos últimos tempos migrasse para minha intimidade e já fazia graça com ela em meus pequenos entraves cotidianos.

Ilustração Zé Vicente

Imaginei de tudo na Copa. Levianamente, fiz piada com o caos e com a nossa impotência. Mas fui surpreendida pelo inimaginável.

Quem de nós poderia supor que o trânsito e os aeroportos estariam travados muito tempo antes e por um motivo muito mais nobre: o grito para não termos mais trânsito, transportes e a própria esperança travados cotidianamente?

Não quero ficar aqui cansando meus raros leitores com o encantamento que senti diante dos últimos acontecimentos. Afinal, não há mais uma página de jornal que passe
incólume ao assunto.

Mas não consigo começar uma linha sequer sem resvalar na minha secreta euforia. Disseco os jornais tentando compreender e assimilar o que construímos nos últimos dias e, apesar das análises mais soturnas, não consigo me livrar desse manto de otimismo em que me enrolei.

Algo de muito importante realmente aconteceu. Demos corpo ao que parecia silencioso e inofensivo. Demos rosto ao que circulava omisso nos palanques virtuais e esticamos a corda em que nossos representantes andavam livremente. Agora estão aí, bambeando, na busca de um equilíbrio qualquer.

Nesta manhã voltei à Paulista e lá estava ela, em sua aparente normalidade. Mas agora meus pés caminhavam respeitosos sobre a barriga de um gigante acordado que piscava pra mim.

Sentei na escadaria da Gazeta para apreciar o teatro urbano. Recomendo. Não sei exatamente o que seremos capazes de conseguir com isso, temos um duro caminho de perseverante vigília pela frente, mas está claro que somos outros. Mais fortes, mais cúmplices e cientes de que, juntos, metemos medo.


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