Folha de S. Paulo


Coração roubado

Confesso que por um bom tempo não dei a mínima para carros. Dirigi durante anos um Logus 94, que ficava estacionado na rua. Eu não me dava nem ao trabalho de lavar.

Policiais que passavam pelo bairro certa vez limparam o vidro para checar se ele não tinha sido roubado e abandonado ali. Com vergonha, sinalizei que era meu.

Vivi muito bem sem automóvel quando morei em Barcelona, uma cidade onde isso é possível e maravilhoso. Já a vida em São Paulo é muito dura para quem não tem carro. Tudo é longe.

Denis Cisma/Folhapress
Belina com placa preta e detalhes de madeira nas laterais
Belina com placa preta e detalhes de madeira nas laterais

Como não concordava com os preços de um modelo novo aqui, fui atrás de um antigo para o uso diário. Por que não?

Achei uma Ford Belina 1974 sendo vendida por R$ 3 mil. Era linda. Verde metalizado, bancos impecáveis, sem sinal de podres, alinhamento das portas perfeito. Foi paixão à primeira vista.

Redescobrir o quebra-vento, o volante fininho e gigante, a ausência de plástico no painel, tudo isso lembrou-me dos carros que meus pais dirigiam. Comprei na hora.

Dirigi-la em São Paulo mudou minha maneira de enxergar o trânsito. O enquadramento da cidade é outro. Rodar incógnito em um carro preto ou prata fechado com película escura pode até ser mais seguro, mas desfilar com os vidros abertos em um antigo é muito melhor. Sinto que estou "vestindo" algo que corresponde à minha personalidade. E não algo para me camuflar na multidão.

Mas, no ápice da paixão, fui roubado. E vi uma cena de estragar o cérebro para sempre: ouvi o motor, corri para janela e a observei sendo levada. Isso aconteceu há 13 anos.

Não sei se foi a descoberta de um mundo novo ou o trauma de ter sido roubado que me fez iniciar uma pequena coleção que conta atualmente com seis carros antigos. Entre eles outra Belina, placa preta, modelo Luxo Especial, laterais com madeira de fábrica, considerada a mais rara entre todas as Belinas. Nunca mais deixei carro antigo meu na rua.


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