Folha de S. Paulo


O califado de Mossul

"Cavaleiros sob a Bandeira do Profeta" foi escrito pelo egípcio Ayman al-Zawahiri nas cavernas da região de Candahar, no Afeganistão, e publicado por um diário árabe de Londres em 2004. No livro, que oferece a mais completa exposição da política da Al Qaeda, encontra-se a meta intermediária do movimento jihadista: a implantação de um "califado à moda do Profeta" no coração do mundo árabe. A conquista de Mossul pela organização Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) assinala a realização da utopia regressiva do jihadismo. O caminho dos "cavaleiros" até Mossul foi pavimentado, em 2003, pela decisão do ex-presidente americano George W. Bush de invadir o Iraque.

O Iraque moderno nasceu há quase um século, inventado pela Grã-Bretanha. Na moldura da estratégia de controle das reservas de petróleo de Kirkuk, os britânicos unificaram as antigas províncias otomanas de Bagdá, Mossul e Basra, de modo a conectar os campos petrolíferos do norte ao porto marítimo do sul, no golfo Pérsico. O fruto da operação geopolítica foi um país constituído por um núcleo territorial árabe sunita, na região central, e pelas áreas de maioria curda, no norte, e árabe xiita, no sul.

A invasão americana derrubou o regime sunita de Saddam Hussein e desmantelou o aparelho estatal autoritário que conservava a ordem interétnica. Do vácuo de poder, emergiu um Estado disfuncional, superficialmente democrático, dilacerado pelas disputas de poder entre as elites xiita, sunita e curda. O califado de Mossul ameaça destruir o castelo de areia erguido pela potência ocupante.

Mossul é o ápice de uma ofensiva lançada em dezembro, quando o ISIS capturou as cidades de Ramadi e Fallujah, nas proximidades de Bagdá. De Mossul, os jihadistas seguiram adiante, pelo eixo do rio Tigre, tomando Tikrit, a antiga base de poder de Saddam Hussein, e emergindo às portas de Samarra. Os "cavaleiros" são algo entre 3.000 e 5.000 milicianos. Mesmo coesionados pela bandeira da jihad, não deveriam representar uma ameaça militar às vastas forças do Estado, armadas e treinadas pelos EUA. Contudo, praticamente não encontraram resistência, avançando em meio à debandada das tropas de Bagdá. É na política, não na arte da guerra, que se encontram os motivos do sucesso da ofensiva jihadista.

O espectro da desintegração ronda o Iraque. Horas depois da tomada de Mossul, o Parlamento adiou, por falta de quórum, um voto sobre a declaração de estado de emergência. O governo iraquiano sustenta-se sobre uma instável coalizão xiita, inclina-se cada vez mais na direção do Irã e marginaliza os partidos sunitas. O ISIS não opera sozinho no Iraque setentrional, mas em aliança com uma extensa rede de lideranças tribais sunitas. Mossul situa-se nas proximidades do Curdistão iraquiano, mas o governo regional curdo não moveu nenhum soldado para conter a ofensiva jihadista. Em vez disso, preferiu aproveitar-se do caos, ocupando a estratégica Kirkuk, que o governo central recusa-se a entregar à administração autônoma curda.

Os jihadistas do ISIS operam no Iraque setentrional a partir de santuários consolidados no nordeste da Síria. A captura de Mossul inscreve-se no panorama de uma guerra regional entre poderes xiitas sustentados pelo Irã e insurgências sunitas financiadas pelas monarquias do golfo Pérsico. Logo após a queda da segunda maior cidade iraquiana, o presidente iraniano anunciou que seu país combaterá, diretamente, os extremistas sunitas no país vizinho.

"Eu não excluo nenhuma opção, pois temos um interesse imperativo em assegurar que os jihadistas não obtenham uma base permanente no Iraque", declarou um aturdido Barack Obama. Mais de uma década depois da ofensiva de Bush rumo a Bagdá, seu sucessor procura evitar a maior das derrotas no Oriente Médio. Ironicamente, o único aliado disponível para os EUA chama-se Irã.


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