Folha de S. Paulo


Lágrimas (muito) coloridas

Não lembro como cheguei a "Space Funeral", de 2010. Tenho uma lista de games a explorar, formada a partir de sessões de escavação obsessiva da internet, e de vez em quando escolho algum deles a esmo para experimentar. O ideal é mesmo que eu nem me recorde mais de como ele foi parar na lista, porque aí a surpresa é maior.

No caso desse RPG, a estratégia foi um sucesso. Eu não estava preparado para encontrar um cenário de cores berrantes e gráficos em estilo 8-bits que por vezes lembram um "Earthbound" (SNES) em decomposição, com uma trilha sonora melancólica que parece extraída de uma cópia da cópia da cópia de uma fita cassete.

Ilustração Alpino

Como em boa parte dos JRPGs (RPGs japoneses) clássicos, gênero que "Space Funeral" parodia e desconstrói, nosso herói começa a história em casa. Aqui o protagonista é Philip, um garoto careca trajado com pijamas listrados, e tão triste que caminha chorando. Mas, ao contrário dos moleques de cabelos espetados que precisam salvar o mundo nos JRPGs, Philip (que dorme num caixão) sai de casa a contragosto, depois de ter sido expulso pelos pais.

Acompanhado pelo fiel companheiro Cavalo-Perna, que no lugar do pescoço e da cabeça tem uma perna decepada e sanguinolenta, Philip parte para a Caverna Sangrenta para dar início às suas desventuras escatológicas em busca da Cidade das Formas.

É o primeiro movimento de um jogo que se destaca acima de tudo pelo tom quase infantil, ao mesmo tempo ingênuo e cruel, tolo e esperto. É como se fosse obra de uma criança especialmente criativa e mórbida.

Essa sensação se sustenta até o jogador perceber que o enredo tem referências platônicas e tudo é bem menos nonsense do que parece, ainda que o jogo se passe num mundo em que um NPC (personagem não controlado pelo jogador) chamado "Músculo Sábio" recomenda que sejam usados filmes antigos para combater fantasmas, pois eles são "sentimentais".

Falando em combate, como em todo o resto de "Space Funeral", a coisa funciona da maneira clássica dos JRPGs: batalhas em turno, com uma implementação rudimentar "active time". A graça está nos poderes e itens: Philip pode chorar para que o inimigo entre em conflito moral, por exemplo.

O resto é a "comfort food" de sempre –"grinding", exploração, acúmulo de dinheiro (aqui, rublos) para melhorar o equipamento etc. Às vezes vem à mente a já citada (e brilhante) série de JRPGs "Mother" e a estética dos (ótimos) jogos de Edmund McMillen, como "The Binding of Isaac" e "Super Meat Boy", mas o saldo final é algo inteiramente novo, um game de fato autoral.

"Space Funeral" é uma experiência despretensiosa, divertida e muito recomendável até pelo baixo investimento necessário: o jogo é gratuito e é possível chegar ao final em três horas, mesmo indo bem devagar e explorando cada canto do cenário. Pesquisando sobre o autor, Stephen Murphy (conhecido como thecatamites), descobri dezenas de outros jogos, todos parecendo adoravelmente estranhos e (ótima surpresa) bem diferentes entre si. Já sei o que vou jogar nos próximos dias.


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