Folha de S. Paulo


Nível de dificuldade: vida

Sou escritor, fui casado, tenho filhos, chego aos 40 em dois meses, já atravessei crises. Condição ideal para nutrir empatia pelos Kaplan, a família que protagoniza "The Novelist" (thenovelistgame.com ), de Kent Hudson.

O jogo acompanha três meses na vida de Dan Kaplan, o romancista do título, sua mulher pintora, Linda, e o filho pequeno do casal, o introspectivo Tommy.

O casamento não vai bem, e todos passam por momentos difíceis: Dan lida com um bloqueio criativo e com a pressão da editora, Linda ensaia voltar à carreira após ter se dedicado a cuidar do filho, Tommy anda com problemas na escola. A família aluga uma casa no litoral do Oregon para passar o verão, na esperança de que a temporada os ajude a resolver seus problemas.

É quase um jogo de estratégia em turnos: assumimos o comando de um fantasma que não atravessa paredes, mas observa o cotidiano dos ocupantes da casa, tem acesso às suas memórias e influencia diretamente suas vidas. Vagamos pelos cômodos lendo os pensamentos dos Kaplan, encontrando pistas em desenhos e cartas e conhecendo os dilemas de cada um.

Cada turno representa uma semana. Após tudo explorado é preciso tomar uma decisão, e é aí que entra a estratégia. É impossível deixar a família inteira feliz. Escolher os desejos de alguém sempre implica em deixar de lado ou minimizar as aspirações do outro, que acaba por se decepcionar.

Não existe certo ou errado no universo do jogo e, como num teste de Rorschach, as decisões acabam refletindo os valores e a balança moral de cada jogador. Cada mínima decisão importa e tem repercussões visíveis, mas o jogo não conduz a nenhuma delas. Fica por nossa conta escolher o que julgamos ser melhor. É complicado, assim como a vida é complicada.

A imersão é tamanha que logo começamos a tratar os Kaplan como seres humanos, demonstrando a eficácia dos games em construir paisagens mentais. A tendência inicial é se identificar com alguém e esquecer que somos um quarto elemento, externo aos dramas da família.

De início ignorei o casal, julgando que adultos são melhores em cuidar de si mesmos do que uma criança vulnerável. Logo percebi o erro, mas relutei em mudar de tática. Não estava preocupado com os dois como pessoas, mas em como podiam ajudar o filho.

Só mudei de atitude quando Tommy deu sinais de incômodo com o sofrimento dos pais. Também admiti o exagero de deixar ambos sempre disponíveis ao filho, que acabaria crescendo sem recursos internos para lidar com frustrações. E assim, pesando bem cada ação, fui encontrando o equilíbrio possível.

Não dá para fazer tudo. Claro, podemos reiniciar o jogo e tomar decisões diferentes para conhecer outras repercussões, outros finais. Mas joguei apenas uma vez e, mesmo curioso, pretendo parar por aí. Prefiro a responsabilidade de ter apenas uma chance de tomar cada decisão, como na vida. E é melhor assim.

Quanto ao que aconteceu com os Kaplan ao final do meu jogo, isso fica entre mim e eles. Convivi com a intimidade da família, o que torna essa questão um assunto particular. Por mais fora de moda que isso seja hoje em dia.


Endereço da página:

Links no texto: