Folha de S. Paulo


Bordel dos Horrores

Lá pela metade dos anos 1980 os adventures em texto reinavam meu mundinho, em conjunto com os livros-jogo e as obras de Tolkien (que conheci em 1986 jogando "The Hobbit", um... adventure em texto). Em tempos de gráficos muito primitivos, facilitavam a imersão em mundos ficcionais de um modo que (até hoje) apenas a narrativa escrita é capaz. Em restrospecto - porque aos 12 anos eu certamente não tinha essa visão utilitarista - eram também um modo divertido de aprender inglês, aprofundar o vocabulário e ficar mais íntimo de dicionários.

Parêntese para quem não conhece o gênero: os adventures em texto foram um dos primeiros gêneros de games, e datam da era dos mainframes (computadores gigantes dos anos 1970, pré-computadores pessoais). O nome vem do pioneiro "Colossal Cave Adventure", criado em 1977 por Will Crowther (que também participou da criação da ARPANET, a rede de redes que deu origem à internet).

Em resumo, são jogos baseados inteira ou primariamente em texto, onde você lê descrições de ambientes e ações e interage digitando comandos - de início, antes dos programas ficarem mais sofisticados e reconhecerem frases mais complexas, apenas no formato "verbo + substantivo" ("abrir porta", por exemplo).

É bem mais envolvente do que pode parecer hoje em dia, e comercialmente teve sua Era de Ouro na época da Infocom, famosa acima de tudo pela série "Zork". Há um documentário sobre o tema, dirigido pelo incansável arquivista digital Jason Scott, chamado "Get lamp" (getlamp.com). Não é muito bom, infelizmente, se perdendo toda hora em tangentes pouco interessantes, mas vale assistir.

Hoje rebatizados de IF ("interactive fiction", ficção interativa), os adventures em texto se tornaram um gênero de nicho, mas sua influência é imensa - um exemplo: sem adventures em texto não haveria MUDs ("Multi User Dungeons"), e sem MUDs não teríamos MMORPGs. Ainda que num volume bem mais discreto, a produção segue incansável, com uma comunidade muito ativa (um bom ponto de partida é o IFDb e premiações como o XYZZY ).

Outro dos filhotes dos adventures em texto é sua reinterpretação japonesa, os "visual novels" (romances visuais), especialmente no subgênero conhecido como "AVG" (de, adivinhe... "AdVenture Game"). No mercado nipônico, os adventures nunca perderam a popularidade de forma tão acentuada como no mundo ocidental, e até pouco tempo os "visual novels" em todas as suas formas compunham metade dos títulos lançados para PCs no país. Todos têm ilustrações, invariavelmente em estilo anime, mas o texto ainda é a parte mais importante.

Voltando aos idos de 1986: tão fascinante quanto passar boa parte do dia tentando chegar ao fim de algum adventure no TK90x (saudade, "After Shock") era fantasiar a criação dos meus próprios jogos do gênero. Havia ferramentas para isso, como o The Quill e o GAC, mas sem dispor de um manual (boa sorte tentando encontrar um sistema de ajuda num programa feito para um micro com 48kb de RAM) ficava difícil e nunca consegui produzir nada jogável.

Só me dei bem quando descobri que "Bordel dos horrores", um adventure "pornô" brasileiro (tão obscuro, pelo jeito, que não tem menção no World of Spectrum e em lugar nenhum da internet) era feito em BASIC. Aí virou festa: bastou analisar o código para montar um mapa e ver como as coisas funcionavam no jogo, e em seguida criar um punhado de "hacks" com temas mais censura livre. Com essa "engine" improvisada, só parei de criar adventures para o ZX Spectrum em 1990. Pena que nenhum deles sobreviveu, para me constranger e aquecer meu coração ao mesmo tempo.

Hoje várias ferramentas facilitam a criação de jogos de alguma forma derivados desse gênero pioneiro, e duas, gratuitas, se destacam: com o Twine é possível criar narrativas interativas não lineares baseadas em hyperlinks e exportáveis para HTML.

Já o Ren'py, bem mais poderoso, ajuda na criação de "visual novels": desde as formas mais simples, praticamente um livro ilustrado na tela, até --dependendo apenas do conhecimento de Python do autor-- jogos com sistemas de interação bem complexos. E ao contrário dos anos 1980, documentação não falta. Mãos à obra.


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