Folha de S. Paulo


Games para acordar

Bem próximo, o ruído das metralhadoras é o mais concreto indício de que minha tentativa de formar um governo de coalizão, baseado no consenso, naufragou de maneira escandalosa. De nada adiantou promover uma reforma agrária, pesar bem quem ocuparia os ministérios e muito menos todas as conversas quase sempre desastrosas com representantes de movimentos sociais.

A economia implodiu, os camponeses se rebelaram, reacionários formaram esquadrões da morte, redações de jornais foram destruídas, o caos tomou conta. Ainda me ofereceram a possibilidade de escapar do país num helicóptero, mas recusei. Estou sentado no gabinete presidencial, o palácio está cercado e é aqui que vou morrer assim que as portas se abrirem.

Era assim que costumavam terminar minhas partidas de "Hidden Agenda" (1988), meu primeiro contato com o que ficou conhecido como "serious games" ("jogos sérios", rótulo que me desagrada, mas isso fica para outra coluna), uma categoria composta de títulos que lidam diretamente com temas políticos e sociais.

Já conhecia, claro, os games educativos: muito morri de disenteria tentando desbravar o Oeste em "The Oregon Trail" (1981) no Apple IIe. Mas nunca tinha visto nada parecido com Hidden Agenda, onde o jogador assume o papel de presidente de Chimerica, uma nação fictícia da América Central, e deve lidar com a tensões internas do país nos estertores da Guerra Fria. Eram tantos detalhes, tantos dossiês e tantas possibilidades de fracassar que acabei fascinado.

Hoje "Hidden Agenda" é considerado, ao lado de "Balance of Power" (uma simulação de geopolítica), uma das joias dentre os precursores do gênero, que conta inclusive com o próprio evento: a décima edição do Games for Change Festival (www.gamesforchange.org) aconteceu neste mês, em Nova York. Além de palestras e debates abrigou também sua tradicional premiação, da qual o vencedor na categoria Game do Ano foi "Quandary" (quandarygame.org), um título para pré-adolescentes que roda direto no browser e no qual é preciso moldar o futuro de uma nova civilização a partir de decisões éticas. No público-alvo e na simplicidade de apresentação e mecânica, lembra Amnesty (amnestygame.com), produzido pela Anistia Internacional.

Mas o filé do gênero está mesmo nos games mais complexos, como "People Power" (peoplepowergame.com), de 2010, com versões para Windows, Mac e Linux e focado no desenvolvimento de estratégias não violentas para participantes de movimentos de resistência civil. Além da campanha padrão, também é possível desenvolver cenários personalizados. Em "Fate of the World" (R$17 no Steam, para Windows e OSX) o desafio a ser vencido é, em primeiro lugar, ambiental: o jogador se une a um painel internacional de especialistas que precisa lidar com o aquecimento global e sua cascata de efeitos num planeta cada vez mais superpopuloso.

"PeaceMaker" (peacemakergame.com, para Windows e Mac), de 2007, ecoa, atualiza e amplia o clássico Conflict: Middle East Political Simulator (1990) ao promover uma imersão na questão israelo-palestina, desta vez buscando o melhor caminho para a chamada "solução de dois Estados".

Até pouco tempo era possível jogar "Hidden Agenda" direto no browser, pelo site do Games for Change. Como infelizmente foi retirado do ar, resta aos interessados baixar o original em algum site de abandonware (aqui, por exemplo: goo.gl/HqhBh) e usar o emulador DOSBox (disponível para várias plataformas) para ter um gostinho amargo das intrincadas dificuldades de se gerenciar uma sociedade em convulsão.


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