Folha de S. Paulo


O vigia do amanhecer

Vânia Medeiros/Folhapress

Um amigo trouxe de Londres um presente maravilhoso: "The Dawn Watch: Joseph Conrad in a Global World" (algo como "O vigia do amanhecer: Joseph Conrad em um mundo global"), de Maya Jasanoff, uma biografia recém-lançada do romancista polonês de expressão inglesa.

Conrad (1857-1924) foi um escritor marcante da minha juventude. Depois de ler "Lord Jim", decidi trocar o vestibular do curso de letras pelo exame da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante, no Rio, nos idos de 1971. O projeto era embarcar num navio, conhecer o mundo e escrever, mas o sonho acabou cedo. Em plena ditadura Médici, não suportei o regime da escola e virei apenas mais um rapaz alternativo latino-americano atrás de um rumo.

Józef Teodor Konrad Korzeniowski –seu nome de batismo– nasceu na Polônia, então uma colônia russa. Seus pais eram sonhadores que lutaram pela independência do país. O menino ficou órfão cedo e foi educado pelo tio, um homem pragmático que lhe garantiu educação e sustento. Aos 17 anos, Conrad decidiu ser marinheiro e o tio o enviou a Marselha, na França, onde começou a viajar. Com 20 anos, entrou em crise e tentou suicídio.

Mais uma vez com a ajuda do tio, e para fugir do serviço militar como "cidadão russo", embarcou para a Inglaterra, mal sabendo a língua, e em duas décadas passou de marujo a capitão, naturalizando-se inglês. Vivendo no ápice do imperialismo inglês e conhecendo os postos mais avançados do comércio mundial, de Cingapura à Venezuela, da Austrália ao Congo Belga, Conrad sentiu na pele a fronteira difusa entre as chamadas "barbárie" e "civilização" –uma fronteira que ele, branco e europeu, já conhecera na infância sob a violência russa.

Começou a escrever ficção, em inglês, já com quase 40 anos, e a língua foi outro estranhamento deste solitário radical. Rudyard Kipling, o poeta oficial do Império, diria que sua prosa lembrava boas histórias traduzidas para o inglês. A modernidade o desdenhou –Virginia Woolf considerava-o apenas um escritor para jovens.

E, no entanto, o que Maya Jasanoff demonstra, ao cruzar os dados biográficos com quatro de suas obras capitais, Conrad foi o primeiro escritor globalizado do mundo moderno, e o mais pessimista deles. Seu olhar não é o da varanda de um bangalô colonial ou de um elegante clube londrino, mas o de um dente da roda, alguém inteiramente imerso na ambiguidade da conquista do mundo. Formalmente, sua prosa impressionista antecipa escritores como William Faulkner. E todos os grandes temas que nos atormentam hoje foram tratados por Conrad com uma lâmina cortante e atual.

"Lord Jim" (1900), que ilustra o fracasso do clássico ideário da honra, põe em jogo a derrocada moral do homem branco ocidental e de sua autoimagem orgulhosa. "Nostromo" (1904) trata da ascensão irresistível dos Estados Unidos no tabuleiro imperial, ocupando o vazio da decadência inglesa. Num país imaginário da América do Sul, uma mina de prata é o mote para golpes de mercenários militares corruptos e para a forja de independências interessadas, como a do Panamá contra a Colômbia. O personagem americano Holroyd, que investe no país, "tem o temperamento de um puritano e a insaciável imaginação da conquista".

Em "O Agente Secreto" (1907), uma trama para dinamitar com um cinturão suicida o simbólico Observatório de Greenwich, que marca a "longitude zero", abre a última fronteira ética do terrorismo moderno.

Em "O Coração das Trevas" (1899), Conrad já havia extraído de sua experiência no Congo, avançando selva adentro até o último limite, o núcleo duro de tudo que escreveu. Nessa narrativa magnífica, que resume a essência da conquista civilizadora nas últimas palavras do personagem Kurtz ("O horror, o horror!"), o que ele nos diz é que a selvageria transcende a cor e o lugar –qualquer um pode ser um selvagem; as trevas estão em toda parte.

Ao final da Primeira Grande Guerra, escreveu a um amigo: "Forças cegas e imensas estão liberadas catastroficamente sobre todo o mundo". Soa-nos familiar ainda hoje.

Como marinheiro, Conrad viveu também à fulminante passagem tecnológica dos veleiros para os vapores, o que é outro signo para o nosso século digital. Que a leitura de seus romances e o prazer de suas narrativas sejam um bom farol para pensar o que vem aí.

A todos, um ótimo 2018.


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