Folha de S. Paulo


Um diário realmente honesto se esgota no próprio gesto da escrita

Vânia Medeiros/ Editoria de Arte/Folhapress

Talvez por escrever com relativa dificuldade, nunca me dediquei aos diários –um gênero mais inútil do que a própria literatura. Porque a literatura, embora não sirva para nada, e este é o seu charme, terá sempre a perspectiva de um eventual leitor, a quem oferecemos uma hipótese de existência.

Um poema, ou as ficções que nascem com ambição estética, têm desde o nascimento um leitor estranho no horizonte, ao qual eu me dirijo. Mas um diário realmente honesto não terá este estrangeiro à frente. Ele se esgota no próprio gesto da escrita, na absoluta intimidade.

Por exemplo, agora eu poderia abrir um caderno (para lembrar um cromo antigo), olhar pela janela e pespegar: "Curitiba amanheceu fria e com o céu bem azul e limpo, que é o melhor da cidade. Tenho de ir ao supermercado; acabou o filtro de café e preciso comprar cerveja. O aquecedor quebrou. Liguei pro técnico, e ele só pode vir amanhã. É um saco". (A primeira frase escapou com fiapos literários; as outras dão para o gasto, e só.)

É claro que, se escrevo abobrinhas no diário, consumo o tempo em que poderia estar escrevendo algo um pouco mais... duradouro? Bem, é um olhar utilitário sobre a vida, por força da sobrevivência.

Uma Forma de Saudade
Pedro Augusto Graña Drummond
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Pois acabo de ler um diário –diário mesmo, sem público nem esperança– extraordinário: as anotações de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) sobre a família e os amigos ("Uma Forma de Saudade - Páginas de Diário", ed. Companhia das Letras).

Drummond foi a vida inteira um escrevinhador de diários, como muitos colegas de seu tempo. Imagino que entre os escritores mais antigos o gênero funcionava como uma espécie de "educação confessional" –e, é claro, havia muito mais tempo livre na vida das pessoas.

Pois o poeta destruiu quase todos os seus diários (o que reforça a sua natureza não utilitária, ou inutilidade prospectiva, por assim dizer), exceto as anotações sobre a família e sobre os amigos, que por alguma razão deixou num envelope para sua filha Maria Julieta.

Organizado pelo seu neto Pedro Augusto Graña Drummond, o livro é complementado com fotos de família e amigos e uma seleção de poemas tendo como temas justamente as lembranças familiares.

Mesmo no diário mais neutro, o mero relato de fatos, o ato de escrever é sempre transformador. Como se, ao descrever o que acontece, também descobríssemos o que acontece, déssemos vida e liga aos fatos fortuitos –nada é nítido no mundo. O que transparece especialmente no diário de Drummond é a presença opressiva da morte. É também uma marca do tempo: morria-se naturalmente muito mais há cem anos; a sobrevivência de crianças era quase lotérica. Dos 13 irmãos de Drummond, nada menos do que oito morreram em poucos dias ou meses.

O olhar de Drummond sobre a família e os amigos tem a mesma contenção e secura que são marcas de sua poesia. Não é exatamente impiedade –é antes uma honestidade intelectual bruta que impede pela raiz o derramamento emocional ou retórico. Como metáfora, por um paradoxo, lembra a linguagem de um poeta que não se entrega à poesia.

E é, antes de tudo, um observador implacável dos detalhes, que, considerados "sem ênfase" (como diria o próprio Drummond) ganham uma inesperada luminosidade. Sua prosa íntima é sempre realista.

Veja-se este trecho, em que Drummond chega em Belo Horizonte para o enterro de sua irmã Rosa: "O motorista corria muito, e na avenida da Pampulha atropelou um burro carregado. O animal ficou caído, de pernas para o ar (talvez quebradas), e o motorista explicou-me mais tarde que se perturbara com o excesso de conversa de dois passageiros –homens de negócios, com a aparência de nortistas, que enchiam a boca com referências a dinheiro, enquanto eu, num canto, me calava". O foco desvia-se do motorista para ele próprio –sem ênfase.

Para Drummond, escrever um diário parecia menos um exercício de escrita e mais uma educação do próprio olhar. Em outro relato, narrando a exumação dos restos mortais de sua mãe, sentem-se vibrações hamletianas: o peso sombrio da cena se contrapõe ao humor de um coveiro, em que não falta uma descrição gótica de uma caveira. Ao final, o poeta anota: "Cumpríamos um dever filial e piedoso, mas não havia motivo para sofrimento; tudo estava acabado e perfeito".


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