Folha de S. Paulo


Modernizada à força, Rússia antes de Pedro 1º era gigantesca servidão rural

Vânia Medeiros/Folhapress
Ilustração Cristóvão Tezza 24.set.17

Conversando com uma jovem russa em visita ao Brasil, no calor da discussão fui surpreendido por uma imprecação plena de sentimento e fúria: "Eu odeio Pedro, o Grande!" O engraçado é imaginar que algum brasileiro, por mais sectário ou fanático que fosse, deixasse Lula ou Moro de lado e esmurrasse a mesa aos gritos: "Eu odeio Dom João 6º!".

A comparação esdrúxula tem seu fiapo de lógica: afinal, ainda que por simples acaso, fugindo de Napoleão, foi Dom João quem começou a transformar esta colônia agrária de escravos em algo parecido com um país, ao desembarcar aqui e "abrir os portos às nações amigas", como aprendemos na cartilha escolar.

A Rússia, antes de Pedro 1º, "o Grande" (1672-1725), era uma gigantesca servidão rural, afundada na Idade Média e no fundamentalismo religioso, comandada pelos boiardos, aristocratas que culturalmente pouco se diferenciavam dos camponeses. Pedro decidiu modernizá-la à força. Sobre um pântano no litoral, ergueu em poucos anos a impressionante cidade de São Petersburgo, que seria, enfim, a abertura da Rússia para a Europa e para a civilização moderna.

Era um empreendimento iluminista. Pedro arregimentou arquitetos, engenheiros e artistas europeus de ponta para desenhar uma cidade geometricamente concebida e povoá-la de palácios, ao mesmo tempo em que obrigou a nobreza a fazer a barba, falar francês, ir ao teatro e comportar-se com boas maneiras.

Mas o método era a barbárie de sempre do poder absoluto –dizia-se que os canais de Petersburgo foram aterrados com os ossos de milhares de servos. Enquanto isso, o velho boiardo da elite, tradicionalmente criado por amas de leite e babás camponesas, movia-se em francês naquele cenário de luxo como um ator deslocado no seu novo papel.

A "janela para o mundo", por bem ou por mal, funcionou. A partir da fundação de Petersburgo, em 1703, em praticamente cem anos a Rússia saltou de seu atraso milenar para uma das culturas mais influentes, paradoxais e impactantes do século 19 e das primeiras décadas do século 20. É inacreditável que praticamente do nada a Rússia tenha criado monstros como Dostoiévski e Tolstói. (Mantidas as proporções tupiniquins, é também assombroso que o Brasil do século 19 tenha gerado Machado de Assis – obrigado, Dom João 6º!).

E seria certamente inimaginável para a inteligência de vanguarda que entrava no século 20 que a violenta Revolução Russa redundasse no stalinismo e fizesse em poucos anos tábula rasa de sua própria cultura, reduzindo-a a uma sombra do que havia sido.

A tensão, entretanto, permanece viva, como a jovem russa deixou claro em sua fúria: o "ser ou não ser" hamletiano da Rússia está entre abraçar a civilização europeia, como queria Pedro, ou refugiar-se nos braços da grande "Mãe Rússia", a "Terceira Roma" utópica do messianismo ortodoxo (e que certamente nutre o imaginário que sustenta Putin).

Não são pautas meramente políticas: elas continuam fortes (e eventualmente mortais) por força da cultura, esta indecifrável fusão de história, valores, herança, sentimentos, violência, língua, religião, poder e geografia que nos move e determina.

Uma História Cultural da Rússia
Orlando Figes
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Esse é o tema de um livro apaixonante que estou lendo, "Uma História Cultural da Rússia" (Record, 882 págs., tradução de Maria Beatriz de Medina), do inglês Orlando Figes (autor de outro livro também imperdível, "Sussurros", que documenta a vida cotidiana de algumas famílias russas desde a revolução de 1917 até a virada do século 21, com ênfase especial no período stalinista).

O que a história russa revela como sua alma latente é o impasse perene e pendular entre universalismo e cultura tribal, sob a força determinante das pressões culturais. É como se vivêssemos permanentemente entre a segurança familiar da tribo, da qual por instinto de liberdade queremos nos livrar, e a universalidade abstrata de uma condição humana racional e sem raízes.

Vivemos a fantasia de que é possível unir as duas pontas, como sonhou a arte moderna. O compositor Igor Stravinski ficou célebre pela revolução formal de sua "Sagração da Primavera" (1913), um ícone da modernidade musical do século 20 – mas o que ele estava buscando de fato era a "autêntica" música russa, as suas raízes pré-históricas, sob o fascínio do irracional.


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