Folha de S. Paulo


Nunca me agradaram histórias de terror; acreditava que não era medo

Vânia Medeiros/Folhapress

Talvez por deformação iluminista, nunca me agradaram histórias de terror. Basta um braço descarnado levantando uma tumba sob a luz sinistra de uma lua, com um pio de coruja ao fundo, para eu fechar o livro ou desligar a TV, voltando à luz tranquila da realidade.

Eu gostava de acreditar que não se tratava de medo, mas de simples reverência à razão, distinguindo o que seria puro terror, a produção sádica de sustos, de alegorias racionais da imaginação, como "O Médico e o Monstro", de Stevenson, ou "A Metamorfose", de Kafka. De qualquer forma, seguindo meu sempre útil mantra juvenil ("Se você tem um problema, enfrente-o"), mergulhei nas obras de Stephen King, um dos papas do gênero, para superar o trauma.

Continuei não gostando: em tudo parecia girar um motor de histeria e loucos endemoniados, como se todos vivêssemos permanentemente sob forças irracionais e incontroláveis: na lógica do terror, ler um livro significa subir numa montanha russa conduzida por um psicopata.

Misery
Stephen King
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De memorável, em "Misery: Louca Obsessão", lembro aquela máquina de escrever com uma angustiante letra faltando, o escritor amarrado à cama da fã enlouquecida, ou (agora o filme) um descabelado Jack Nicholson no hotel vazio escrevendo eternamente a mesma palavra. Cenas poderosas, mas insuficientes para vencer o meu desejo de realidade.

O leitor adepto de um gênero tão popular certamente desmontaria meus argumentos em duas penadas, e com razão: há mais coisas a considerar além da mera inclinação pessoal. Para me desmentir, caiu-me às mãos "Neve Negra", de Santiago Nazarian (Companhia das Letras), e o livro foi me puxando pelo colarinho em um fôlego só.

Um pintor de sucesso, mas um tanto inseguro, volta para casa de uma viagem ao exterior, para reencontrar a mulher e o filho pequeno. É um vilarejo no interior de Santa Catarina que, sob um inverno pesado, está debaixo de neve, esta paisagem estranha entre nós.

A narrativa se faz em primeira pessoa e o pintor nos envolve numa conversa sincera; gostamos do jeito dele, meio enviesado, algo defensivo, com os planos e dúvidas de uma pessoa normal, e por empatia instintiva torcemos para que ele chegue bem em casa e encontre seu filho e sua mulher, que tudo esteja bem e ele durma tranquilo depois da longa viagem.

Mas assim que ele abre a porta de casa as coisas vão dando erradas, sem que se perca (esse um dos segredos) o eixo de realidade, ao qual o personagem (como o leitor) quer se segurar o tempo todo como ao corrimão indispensável que nos deixa em pé.

O problema é que uma sucessão de estranhezas mais ou menos verossímeis (pode ser apenas uma alucinação, pensamos esperançosos) vai provocando uma derrocada racionalmente demolidora, em que sexo, afetos, pedofilia, violência e direção na vida –fico por aqui, para não estragar a leitura. Enfim: literatura de alta intensidade.

Lembrei de outra leitura recente e semelhante, "Distância de Resgate", da argentina Samanta Schweblin (Record), uma narrativa igualmente forte em que o terror também se faz pelo fio de realidade que tentamos recuperar.

Uma mulher conversa com um menino no hospital, e nesta névoa impressionista a história se recompõe em fragmentos. O que me chamou a atenção na comparação foi menos a técnica do terror e mais a natureza dos narradores, a voz brasileira e a argentina.

Enquanto o olhar brasileiro precisa necessariamente filtrar o mundo pelos afetos (porque apenas eles parecem nos justificar), metendo os pés pelas mãos (o narrador é sempre parte visceralmente interessada em tudo que contamos, é a nossa vida que está em jogo ali), o clássico narrador argentino como que mantém uma distância segura, sobranceira, aristocrática, de tudo que relata, como se nada daquilo tivesse a ver com sua vida; a sombra elegante e indiferente de Borges se entrevê ao fundo de cada página.

O narrador brasileiro precisa se explicar; ele depende disso para ir adiante, continuar sua história, fazer sentido, descobrir quem ele é; o argentino parece que já sabe o que é, o que ele quer e como vai chegar lá.

Claro que ambos são simulacros, duplos representados: mas é por este espelho inesperado que a boa literatura acaba por nos revelar o que vai além do escritor.


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