Folha de S. Paulo


A virulência das redes sociais é sucessora do totalitarismo

Mariza Dias/Editoria de Arte/Folhapress

O Tic Tac é um mostrengo terrível, isso (e outras coisas) aprendi lendo os resultados do Projeto Mostrengo do segundo ano da escola Oswald.

Fiquei particularmente impressionado com o Tic Tac porque 1) conheço um de seus autores, 2) gosto do nome, não por causa das balas homônimas, mas porque ele me evoca, em francês, a alternância rápida de falas e réplicas, num diálogo.

Se respondo "du tic au tac", significa que respondo na hora, na paixão que me atropelou ao ler ou ouvir a fala do outro, sem pensar. Às vezes pode dar certo, mas, em geral, enxergarei moinhos de vento. E lá eu irei, lança em riste.

Você já entendeu: o Tic Tac vive no pântano das redes sociais e não poupa ninguém. Aí todos querem, aliás, tornar-se Tic Tac, pois o Tic Tac "nunca perde uma batalha".

O jeito para não esbarrar no Tic Tac é ficar longe do pântano. Mesmo assim, é bom se perguntar como o pântano nasceu e de que se alimenta o Tic Tac, seu mostrengo.

Acaba de sair pela Todavia "A Vítima Tem sempre Razão? - Lutas Identitárias e o Novo Espaço Público Brasileiro", de Francisco Bosco.

Grande parte do livro (que é crucial e imperdível na atualidade) é dedicada a uma genealogia das redes sociais no Brasil, mostrando como se tornaram um novo espaço público em que não acontecem debates, mas linchamentos, e onde circulam não ideias, mas palavras de ordem.

Há quem diga que nesse novo espaço se revelaria a "verdadeira" natureza humana, sedenta de sangue.

Talvez. Eu penso sobretudo que a virulência das redes sociais é a sucessora direta das políticas totalitárias de extermínio do século 20.

Ambos os fenômenos são filhos da razão abstrata (mas funcional) pela qual um debate é ganho quando consegue-se calar o adversário –exterminando-o ou gritando mais alto, fazendo com que a fala seja mais violenta, menos complexa e, portanto, mais facilmente apropriada, ganhando mais likes e retuítes.

Nessa dinâmica, ter razão equivale a silenciar o outro.

Em geral, não leio "debates" (embates, deveríamos dizer) nas redes. Mas quis ver as reações ao livro de Bosco, que aprecio bastante e que trata (com todo cuidado) de questões polêmicas. Por exemplo, além da questão do título, a de saber se é legítimo um indivíduo se posicionar contra ou a favor de um grupo identitário ao qual ele não pertence.

Tipo: Marx, Engels, Lenin, todos burgueses de classe média alta, podiam falar em nome do proletariado? Um homem pode se expressar, apoiando ou criticando, sobre o movimento feminista? E um branco, sobre o movimento negro, pode?

Pois bem, demonstrando minha tese sobre as redes sociais, os argumentos de Bosco, lá onde tentam abrir uma discussão, encontraram sobretudo argumentos silenciadores, do tipo: cala a boca macho branco, morador do Leblon etc.

Isso dito, vamos a uma questão específica levantada por Bosco, também com delicadeza: a ideia antiga (do feminismo radical dos anos 1970-80, e especificamente de Andrea Dworkin), segundo a qual o relacionamento heterossexual conteria ou acarretaria uma dimensão de violência e estupro que lhe seria natural e, portanto, inevitável (e intolerável).

Desde aquela época, tenho duas objeções à ideia de Dworkin.

A primeira é que, obviamente, sim, as relações sexuais (heterossexuais ou não) dificilmente evitam um erotismo da dominação e da submissão (tanto faz de quem por quem, aliás). Agora, esta é uma constatação empírica: quanto mais a dominação e a submissão são jogos sexuais, menos elas se exercem fora do sexo. Ou seja, raramente os que brincam e gozam com algemas e chicotes são os mesmos que submetem e atormentam companheiras e companheiros fora do sexo.

A Vítima Tem Sempre Razão?
Francisco Bosco
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A segunda objeção consiste em aplicar a Dworkin a mesma crítica que a Santo Agostinho, embora pensem coisas diferentes. Começa assim: cada um é autorizado a viver como pode pela singularidade de sua história e de seu sofrimento. Dworkin pode renunciar a todo coito heterossexual, e Agostinho também. Eles que sabem. Bom para eles.

Agora, não é sábio reconhecer valor coletivo e programático às restrições que sujeitos sofridos tiveram que se impor para sobreviver a momentos traumáticos de sua infância.

É o que nossa cultura fez no caso de Agostinho, e o resultado realmente não foi bom. Não vamos repetir com Dworkin, tá?


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