Folha de S. Paulo


Crianças podem ter fobia de palhaço, a gente tem fobia do noticiário nacional

Mariza/Editoria de Arte/Folhapress

Quando criança, eu tinha medo do escuro. A porta do quarto (meu e de meu irmão) era de vidro jateado. Meus pais deixavam a luz do corredor ligada até eles irem para cama. Aí, supondo que eu estivesse dormindo, apagavam tudo.

Suposição errada: eu ficava acordado, esperando o momento fatídico em que perderia minha luz. Na minha lembrança, aliás, eu não dormia nunca. Enquanto havia luz, ficava esperando que apagassem. Depois disso, era um pavor crescente e insone.

O medo, em geral, aparece pelos quatro anos de idade. No começo, eu fui pedir socorro para os meus pais, no meio da noite. Eles nunca cogitaram me enfiar na cama deles –nem mesmo para que eu não atrapalhasse seu sono.

O problema é que eles estavam bem entre si e não tinham medo do escuro. Digo isso porque mais tarde descobri que os pais que enfiam um filho ou uma filha na sua cama, de fato, usam a criança quer seja para eles acalmarem sua solidão e seu próprio medo do escuro, quer seja como desculpa para eles evitarem as relações sexuais (com a criança na cama, não dá, certo?).

Os evolucionistas dizem que o medo do escuro é uma herança do tempo em que a gente dormia ao redor do fogo, ouvindo os gritos das feras que nos circundavam, na escuridão.

Muitos psicoterapeutas dizem que o medo do escuro é medo de algo que está dentro da gente –demônios internos que imaginamos e projetamos, como feras que nos atacariam de fora.

Outros ainda acham que o medo do escuro é angustia de separação; e é verdade que, de noite, na nossa caminha, somos separados dos pais e sobretudo da mãe. Note-se: a angustia de separação nas crianças não se cura colocando-as na cama da gente, mas, ao longo de anos, construindo confiança, reaparecendo sempre, depois de uma ausência, bem na hora e no lugar prometidos.

Agora, existem duas grandes categorias de angústia: a angústia de separação e a angústia de se perder na indiferenciação, num magma que nos devoraria e onde perderíamos nossa individualidade para sempre. Ou seja, tem a angústia de ficar sozinho, e tem a angústia de ficar excessivamente junto aos outros, como na "Bolha Assassina" (1958, remake em 1988), em que uma gelatina gosmenta incorpora a todos.

Enfiar os filhos na cama significa entregá-los à angústia da bolha assassina sob pretexto de salvá-los da angústia de separação.

O medo do escuro pode continuar até a adolescência e a idade adulta. E sua frequência é grande: Peter Muris, um dos psicólogos que mais pesquisou o medo do escuro, relata que, numa amostra de crianças entre 4 e 12 anos, na Holanda, 73% declaravam ter medo do escuro. E acrescente os que preferem não confessar seu medo.

Talvez o medo do escuro seja a matriz de todos os outros medos. A ideia de uma matriz comum de todos os medos é a inspiração de "It" ("A Coisa"), de Stephen King (1986), que li nos anos 1990, enquanto me recuperava de uma cirurgia. O filme "It - A Coisa", hoje em cartaz, é ótimo (de muitas formas melhor do que a primeira adaptação, de 1990).

Sem spoilers:

1) Qual é a "Coisa" do medo, seu objeto, seu negócio, sua origem absconsa? Além das representações, das fantasias apavorantes e dos pesadelos de cada um, de que se trata no medo, qual é a fera que nos espreita a todos, no escuro ou nas entralhas da terra? A morte? O futuro incerto? O sexo? Tanto faz, pois"¦

2) "¦a Coisa não se mostra nunca: ela aparece só nos pavores de cada um, todos diferentes, mas que, no livro e no filme, têm uma figura em comum: o palhaço.

O sindicato dos palhaços dos EUA protestou, pela enésima vez, contra as imagens apavorantes de um palhaço no filme. Eles têm razão de protestar, mas o fato é que o medo dos palhaços é bem frequente nas crianças. Há duas explicações básicas:

1) Uma criança faz esforços consideráveis para aprender a interpretar os sentimentos e as emoções dos outros; a maquiagem, assim como as máscaras, tornam os outros incompreensíveis e portanto ameaçadores.

2) Algumas crianças têm fobia de palhaço "porque os palhaços fazem besteiras": elas se assustam com a ideia de que os adultos não sejam confiáveis e façam "besteiras".

Os brasileiros que têm fobia de palhaço estão, aliás, passando mal. Olham para o noticiário e descobrem com horror que seu pesadelo se realizou: somos governados por "adultos" que não são responsáveis e só fazem besteiras.


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