Folha de S. Paulo


Sutil e profundo, 'Como Nossos Pais' retrata bem relações entre mãe e filha

Um leitor, Fernando Nuno, comentando a coluna da semana passada, analisa algumas ficções nas quais adultos mortos-vivos "têm como finalidade cega destruir o futuro das novas gerações".

Talvez, ele observa, os jovens saibam que a gente está entregando a eles um mundo pior do que aquele que nós recebemos de nossos pais e, portanto, enxerguem-nos como zumbis assassinos.

Concordo com ele; só acrescento que os adultos, em relação a seus rebentos, nunca são realmente benevolentes. Atrás do clichê da família margarina, ciúmes, inveja e rivalidade são sentimentos corriqueiros de pais para filhos.

Por exemplo, há jovens adultos parados na vida porque querem evitar ter mais "sucesso" do que seus pais. Esse é um problema dos filhos? Ou dos pais? Os jovens em questão, em geral, temem as consequências de seu próprio sucesso porque conhecem a intensidade da inveja que seus pais sentem deles. A começar pela inveja básica de quem presume, raivosamente, que, em tese, ele morrerá primeiro, enquanto os filhos continuarão vivendo.

As piadas de sogra, estranhamente, preferem tratar as supostas dificuldades entre uma mulher e seu genro. Suspeito que seja para esconder outras dificuldades, que preferimos esquecer. É corriqueiro, isso sim, que a nora seja mal vista pela mãe do noivo (quem é essa mulher que se meteu entre meu filho e eu?) ou que a sogra concorra com a própria filha pelo amor do genro.

Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
Mariza 31.ago.2017

Aqui, abre-se o vasto capítulo, doloroso e divertido, das relações entre mãe e filha, provavelmente as mais complexas do núcleo familiar.

Estreia nesta quinta (31) "Como Nossos Pais", de Laís Bodanzky. O filme, tocante, leve, comovente, engraçado e sempre sutil e profundo, é o melhor que eu me lembro de ter visto sobre as relações entre mãe e filha (e também entre sogra e genro, sogra e nora, mulher e marido, mulher e filhas, mulher e amante").

"Como Nossos Pais" acaba de ganhar seis Kikitos no Festival de Gramado; é escrito (por Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi), dirigido, atuado e montado de maneira magistral. Fique atento às personagens entrando e saindo de cena: a câmera parece ter suas próprias ideias sobre a permanência da casa, de seu espaço e de seus objetos, no agito dos afetos familiares. E admire (é o verbo certo) as atuações de Clarisse Abujamra (a mãe) e Maria Ribeiro (a filha).

Enfim, nenhum spoiler: só algumas reflexões, digamos, "abstratas".

Disse que, das relações familiares, a mais complexa e tensa é entre mãe e filha. A rivalidade amorosa não é tanto em relação ao pai (por quem as duas competiriam), mas em relação a todos os homens do mundo: o fato de a filha ser jovem e desejável a torna quase sempre objeto de uma inveja brutal da mãe.

A psicanálise explica que, no declínio do Édipo, o que é pedido à menina é que ela renuncie ao pênis do pai: com isso, ela poderá ter acesso a todos os pênis do mundo. Certo, mas a mãe não é boba: como assim, a filha pode ter todos, e ela fica só com o marido?

Não é raro que a mãe tenha um estranho (e escuso) prazer em ver a filha fracassar amorosamente. Outro "detalhe" que o filme nos ajuda a pensar. De onde vem a educação que dispensamos aos nossos filhos?

Freud pensava que a educação familiar tende a ser sempre fundamentalmente conservadora. Pois tentamos educar não como nossos pais nos educaram, mas como nossos pais teriam gostado de nos educar, ou seja, como nossos pais imaginavam que seus próprios pais (nossos avós) teriam gostado de educá-los" E por aí vai.

Também, educando nossos filhos, tentamos compensar as "falhas" que sentimos na nossa educação –seja mentindo (para melhor ou para pior), inventando na nossa memória uma educação que é diferente da que recebemos; seja tentando dar a nossos filhos o que achamos que nós não recebemos de nossos pais.

Enfim, talvez mais importante: com Rosa, a personagem principal, Laís Bodanzky e Maria Ribeiro nos oferecem um retrato verdadeiro e inesquecível da dificuldade de ser não só filha mas sobretudo mulher hoje –dividida entre sonhos, aspirações e desejos em permanente conflito: ser mãe, ganhar a vida, ser filha, ser mulher e amante sem topar com uma opressão tão enraizada que os homens nem sequer se dão conta.

Alguém, no filme (o roteiro tem várias dessas genialidades), chama Rosa de "feminista erótica". Vou adotar. E vou querer rever o filme, mais de uma vez.


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