Folha de S. Paulo


Manchester e a quinta coluna

Em 1936, o Exército franquista, que tentava (e conseguiu) acabar com a democracia na Espanha, queria marchar sobre Madri com quatro colunas militares. Eles contavam também com uma "quinta coluna", composta de todos aqueles que, dentro da cidade sitiada, diziam-se favoráveis ao governo legal, mas se descobririam, no fim, aliados potenciais dos fascista.

A expressão quinta coluna não se referia tanto a grupos militantes ou militares infiltrados, mas a todos os aliados objetivos, que, na hora certa, se juntariam aos invasores.

Outro exemplo, durante a Guerra Fria, qualquer partido comunista ao oeste da Cortina de Ferro era considerado como uma potencial quinta coluna soviética.

De novo, a quinta coluna não é necessariamente uma organização clandestina, seus membros nem precisam saber que eles são "aliados" dos inimigos: é suficiente que eles, no final, identifiquem-se com o inimigo.

Na segunda (22), em Manchester, Grã-Bretanha, na saída de um show de Ariana Grande (uma cantora pop cujos fãs são principalmente adolescentes), uma bomba matou 22 pessoas e feriu outras dezenas. Na terça (23), o Exército Islâmico reivindicou a autoria do atentado.

Na hora em que escrevo, pouco se sabe do autor; a polícia considera que agiu sozinho, mas procura cúmplices eventuais, que poderiam ter colaborado com o perpetrador na própria logística do atentado.

Mas eu considero que o terrorismo precisa de cumplicidades maiores e mais difusas. E chego a pensar que, sem essas cumplicidades, o terrorismo mal conseguiria vingar e operar no Ocidente. Essas cumplicidades constituem a verdadeira quinta coluna do terrorismo islâmico nas ruas do Ocidente.

Agora, cuidado, não estou me referindo a (eventuais) franjas extremistas de populações muçulmanas, imigrantes ou refugiadas.

Os grandes cúmplices do terrorismo islâmico são velhas ideias que acompanham a própria cultura ocidental faz tempo e que, de fato, expressam a nostalgia de um mundo organizado pelos privilégios de casta. 1) A ideia de que nossos valores fundamentais (a começar pela liberdade do indivíduo) seriam nossa fraqueza e nossa perdição, e não nossa força. 2) A ideia de que seríamos uma cultura degenerada e em declínio.

Quer saber se você tem chances de ser contabilizado como um membro possível da quinta coluna terrorista? Um pequeno e rápido teste vai responder. Marque cada pergunta à qual você responde "sim".

( ) Quando você soube do atentado de Manchester, você pensou, mesmo que seja por um momento, que essas meninas menores deveriam ter ficado em casa com seus pais, quem sabe lendo um livro, em vez de ir a um show de música pop sei lá com quem?

( ) Você acha que um show pop para adolescentes é um lugar promíscuo e permissivo, estética e moralmente degenerado?

( ) Você viu fotografias das vítimas de Manchester e pensou que agora elas saberiam que roupa rasgada não é tão legal assim?

( ) Você já pensou alguma vez que, se uma menina foi estuprada, é porque ela estava querendo, porque usava roupa indecente?

( ) Você já usou mais de uma vez a expressão "modernidade líquida" para dizer que as relações humanas, nos nossos tempos, careceriam da solidez dos grandes afetos?

( ) Você acha que as meninas e os meninos de Manchester, em vez de ir a um show, deveriam ter ido a um comício político, ao menos saberiam por que morreram?

( ) Você acha que não existem mais cidadãos, mas apenas consumidores -e que por isso mesmo não haveria mais pensamento político?

( ) Você acha que todos deveriam seguir sua regra moral e que não seguir sua regra moral é uma forma de desrespeito por você e pelas ideias nas quais você acredita?

( ) Você acha que nossos tempos são imediatistas e hedonistas? Pense bem. Se você apenas repetiu considerações de outros pode não valer. Só vale se você pensa mesmo que essas seriam caraterísticas de nossos tempos.

A lista pode ser muito, mas muito mais longa. Mas, se você respondeu sim a ao menos duas das perguntas, ou se você respondeu sim a uma das duas últimas perguntas (que valem dois pontos), então permita-me, por uma vez, uma resposta clara, jacobina: então, você faz parte da quinta coluna do terrorismo islâmico radical.

Parabéns, seu ódio pelos valores cruciais de nossa cultura confirma e sustenta o ódio de quem nos mata indiscriminadamente.


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