Folha de S. Paulo


Votos de esquerda

Mariza Dias Costa/Editoria de Arte/Folhapress
Mariza Dias Costa - Ilustração para coluna do Contardo Calligaris - Quinta-feira, dia 11/05/20107 - 11.mai.17

Emmanuel Macron é o novo presidente da França, aos 39 anos e por um partido que ele mesmo acaba de fundar.

Macron ganhou o segundo turno das eleições com 66% dos votos. É a percentagem mais alta de qualquer eleição da Quinta República francesa, salvo pelas eleições de 2002, em que o gaullista Jacques Chirac ganhou de Jean-Marie Le Pen (o pai da Marine Le Pen, que foi ao segundo turno desta vez) por 82,2% dos votos.

Mas a comparação com 2002 não se sustenta: na época, a Frente Nacional era declaradamente neofascista, enquanto, desde então, Marine Le Pen luta por um verniz de respeitabilidade.

No segundo turno, Marine Le Pen foi de 21,3%, a 33,9%. De onde vieram os novos votos que ela ganhou (12,6% dos eleitores)? Ela recebeu o apoio de um pequeno partido direitista (4,7% dos votos no primeiro turno). E os restantes?

As pesquisas mostram que, no segundo turno, 17% dos eleitores da tradição gaullista votaram na Frente Nacional de Le Pen. Acharam que a Frente Nacional protegeria seu interesse –quem sabe, abolindo o imposto sobre as grandes fortunas. Será que foi por isso que eles endossaram uma formação cuja história e cujos valores são totalmente afastados do espírito de resistência do gaullismo?

As mesmas pesquisas mostram que 9,4% dos eleitores dos "insubmissos" (a "extrema" esquerda) votaram em Marine Le Pen. E, do Partido Socialista, 3% votaram nela.

Como é possível ser de esquerda, extrema ou não, e votar em um partido nacionalista e fascista?

Alguém responderá que foi como com os gaullistas: se os fascistas defendem seu interesse, por que o eleitor não votaria neles?

Não sei. Para mim, a esquerda se define por duas coisas indissociáveis: justiça E liberdade, ou seja, o interesse dos menos favorecidos E, AO MESMO TEMPO, a preservação das conquistas da revolução burguesa do século 18. As conquistas proletárias não subtraem, mas acrescentam às melhores conquistas sociais e culturais da burguesia.

Você acha que isso é o pensamento típico de um intelectual burguês que milita na esquerda? A gente, intelectuais burgueses, militaria contra os interesses de nossa classe social e, em troca, esperaria que o proletariado defendesse os valores burgueses que nos importam, como liberdade de expressão, de opinião, de circulação e de reunião, laicidade do Estado, liberdade dos costumes, autonomia da esfera privada etc.

Alguém acrescentará que está na hora de eu entender que as liberdades burguesas são é um luxo que eu posso me permitir, o proletariado, não: a classe operária, se for melhor para seu interesse, votará nos fascistas, sem frescura. Nenhuma novidade, os fascistas sempre chegaram ao poder pela sedução de suas propostas sociais e se dizendo socialistas.

Enfim, será que o "interesse" do proletariado é só econômico?

Cuidado, essa questão é menos afastada da realidade brasileira do que parece.

Imaginemos um 2018 (ou 2022), em que tenhamos um candidato fascista ou evangélico garantindo a volta ao antigo regime da Previdência e às antigas garantias trabalhistas, e promovendo, em troca, os "valores" que ele inventou em matéria de família, sexo, tradição etc.

Você, militante da esquerda, vai renunciar à aposentadoria integral aos 60 anos (ou antes) para proteger o direito à liberdade de consciência ou à pratica do sexo e do amor que cada um prefere?

Só sei que a esquerda na qual me reconheço não hesitaria um instante para escolher seu lado.

Em 1972, Enrico Berlinguer, secretário do Partido Comunista Italiano, nas palavras finais da campanha eleitoral, disse, lembro como se fosse hoje: "Nós nos endereçamos a todos os que amam a liberdade".

Na mesma fala, ele citou Piero Calamandrei, um antifascista não comunista, e usou a palavra "scherano" para qualificar os fascistas.

Eu estava na célula da viale Argonne, em Milão. Alguns companheiros perguntaram o que significava "scherano". Com a filologia clássica na ponta da língua, lembrei que a palavra tinha sido usada por Dante nas rimas "pedrosas", para se queixar de uma mulher que não lhe dava bola e que ele chamou de "scherana", bandida. Rimos.

Naquela noite, formou-se um grupo de estudo, que durou um tempão, para ler os escritos políticos de Calamandrei, que existiam num volume, publicado por Norberto Bobbio.

Aquela era minha esquerda. E ela se orientava por justiça E liberdade, indissociáveis.


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